sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Governo Retardou a Redução dos Juros: Por Que? - parte 2

Artigo-reportagem e entrevista publicados em dezembro de 2008, são bastante elucidativos para o entendimento dos movimentos atuais da economia brasileira.
Especialmente, se levarmos em consideração de que o texto em que se baseiam foi escrito em 1996.
Nossa fonte foi a Fundação Perseu Abramo.

Leitura - Revista Eletrônica

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Entrevista
José Carlos de Souza Braga

"Lula tem trunfos para negociar um acordo com o mercado: menos juros, mais crescimento". (Dez./2008)

A seguir trechos da entrevista do economista Carlos José de Souza Braga à Carta Maior.

Prof. José Carlos de Souza Braga
CM - Já se pode visualizar o passo seguinte dessa crise? Seria uma transição de retorno ao capitalismo regulado?
Braga - Acho difícil falar em retorno de uma coisa diferente a um modelo igual. O capitalismo hoje não é igual àquele subordinado às regras de Bretton Woods com disciplina bancária egressa da crise de 29. Mais que isso, a supremacia da lógica financeira desregulada não é um privilégio dos mercados do dinheiro. O fato novo é que as empresas produtivas também foram contaminadas por essa dinâmica. Seu caixa, que no caso das grandes corporações internacionais detém volumes significativos de liquidez, obedece a uma função financeira agressiva.

CM – Mas a função financeira não existiu sempre?
Braga – Não estamos falando mais de aplicações passivas, defensivas como antes. São estratégias de valorização apoiadas em opções especulativas com câmbio, títulos, matérias-primas de envergadura internacional. Sua contundência nada fica a dever aos profissionais do ramo. Não estamos falando em rentismo defensivo. As grandes empresas praticam um rentismo ofensivo. Estão no jogo da financeirização e não poupam cartas.

CM – Isso complica as saídas para a crise?
Braga - Veja, surgiu uma lógica que não era visível, pelo menos não era plenamente visível, nem no conceito de capital industrial de Marx, nem na concepção keynesiana de capital empreendedor. Isso obedece a uma capilaridade mundial sob hegemonia norte-americana. Não creio que a regulamentação desse padrão capitalista possa se deter nos limites anteriores baseados em regras prudenciais bancárias, exigências de maior contrapartida em capitais líquidos, enquadramento de bancos de investimento, etc. Tudo isso é necessário e deverá acontecer; mas o sistema não termina mais aí.

CM – O que seria necessário para ir além desse ponto, já difícil pelo que se observa?
Braga - Seria necessário um sistema de controle de grande complexidade nacional e internacional. Não enxergo viabilidade política para algo dessa proporção. O que o Volcker (Paul Volcker, ex-presidente do FED e conselheiro econômico indicado por Barack Obama) está dizendo? Ele está dizendo o seguinte: vamos agir, vamos recriar algumas regras, mas com cuidado, não se pode comprometer a criatividade dos mercados. Quer dizer, o limite é imposto pelo lógica que levou à emergência dos supermercados financeiros, o vale-tudo das operações derivativas, alavancadas, etc., robustecidas a partir dos anos 70/80. Ademais, resta a questão nova que o capital produtivo já não se movimenta mais apenas como capital produtivo; a financeirização está arraigada à concorrência, da qual ele não pode se libertar; e a concorrência está associada à financeirização, que desse modo ficou muito mais difícil de se regulamentar.

CM - O Estado que promoveu a regulamentação anterior também não existe mais; não existem as forças sociais que o orientavam...
Braga - Tenho que pedir licença para falar um pouco do estágio sistêmico dessa crise. O que a diferencia das anteriores, nos anos 70 e 80? Antes, cada vez que surgiam problemas num segmento do mercado, o Estado atuava como prestamista de última instância. Garantia as transações; oferecia um seguro às operações do próprio mercado. Dessa vez a crise é tão ampla, desarticulou a tal ponto o sistema, inclusive a capacidade de precificação do mercado que é uma de suas funções fundamentais, que não adianta o Estado dar garantias de última instância. Os negócios travaram. Há montanhas de papéis que nada mais valem; existem ativos tóxicos em poder de bancos, fundos e empresas de valor desconhecido; toneladas de papéis híbridos, composições de diferentes ativos e riscos que ninguém mais sabe exatamente o que significam. Quer dizer, o mercado virou um sistema-sombra, cheio de armadilhas; a desconfiança é geral. Isso é uma crise sistêmica. Os fundamentos foram abalados e deixaram de referenciar os negócios. É aí que entram os Estados.

"O Estado está compondo inteiramente o mercado outra vez".

CM - As políticas convencionais não resolvem mais?
Braga - O que está ocorrendo com relação aos Estados, a expressão correta, é que eles se tornaram ‘market markers’; ou seja, o Estado está compondo inteiramente o mercado outra vez.

CM – Uma estatização para reconstruir o mercado...
Braga - Exatamente; paradoxalmente é disso que se trata. Uma estatização de enormes proporções para reconstruir os mercados. Daí as trocas envolvendo valores fabulosos de títulos podres por títulos do Tesouro, nos EUA. É uma transfusão. Estatização em defesa da macroeconomia financeira. É isso.

CM – Já ocorreu antes algo parecido?
Braga - Nessas proporções não. Ocorreram casos pontuais que de certa forma sinalizavam o passo seguinte que assistimos. Nunca se deixou de socorrer o sistema nesses trinta e oito anos de financeirização exacerbada e desregulada. Note, falamos de uma dinâmica que já persiste há 38 anos. Portanto, um arranjo capitalista mais duradouro que aquele dos gold age, os anos de ouro, quando o sistema devidamente regulamentado pelo Estado era induzido a trabalhar pelo bem-estar social. Isso durou trinta anos subseqüentes à II Guerra.

CM – Nos anos mais recentes o Estado passou a trabalhar pelo mercado...
Braga - Nunca deixou de intervir para salvar o sistema financeiro dele mesmo. Exemplos: Coréia em 1997; os bancos foram estatizados depois de quebrarem; em seguida devolvidos ao mercado. México, 1994, idem. Agora, nunca em dimensões tais que se pudesse dizer, como hoje, vivemos uma crise sistêmica. A financeirização desregulada trombou nas suas próprias pernas.

CM – É o fim do neoliberalismo?
Braga - Não diria; pelas mesmas razões que não acredito num Bretton Woods II que pusesse novas balizas fundadoras de um novo ciclo do capitalismo mundial. É preciso observar com atenção mais um tempo, mas talvez o pico da crise financeira tenha sido contornado. Vivemos agora a etapa seguinte, o impacto violento na economia real. Tudo vai depender das medidas a serem tomadas pelos EUA, a partir de 20 de janeiro, com a posse de Barack Obama. Creio que vão agir pesadamente. Vão lançar mão de uma política fiscal expansionista para tentar deter a recessão. No que diz respeito aos mecanismos financeiros, devem jogar alguma luz sobre o sistema-sombra e sua teia de negócios insondáveis. Mas não se deve ter esperanças numa grande reforma do sistema capitalista. Algo equivalente ou com a mesma importância histórica que marcou o sistema depois de 29 e depois da Segunda Guerra depende de atores políticos que não enxergo. A característica sistêmica da financeirização, como disse, penetrou inclusive no tecido do setor produtivo. Isso adiciona dificuldades históricas ao surgimento de forças reformistas com a contundência que seria necessária.

CM - No caso dos países da periferia do sistema capitalista, progressivamente minados progressivamente pela crise, a ação estatal também colide com esses limites no centro hegemônico?
Braga – É preciso examinar os casos concretos. Por exemplo, no caso da integração regional, na América do Sul, o grande entrave a uma ação coordenada, que nessa hora seria de extrema importância, são as elites locais. Elas, em sua imensa maioria, selaram seu destino ao destino da matriz hegemônica norte-americana. Isso tem que ser rompido por outra hegemonia.

CM - No caso concreto do Brasil, o que sobra para o governo, na medida em que as decisões já tomadas parecem insuficientes; a crise começa a desidratar o emprego, as contas cambiais e o investimento...
Braga—O Brasil é um desses casos que reúne trunfos para resistir; a partir de sua ação o cenário regional pode até mudar.

CM - Quais os trunfos do governo Lula?
Braga - Bom, antes é necessário dizer que ter trunfos não basta; é preciso utilizá-los. Esse fator está em aberto. Um exemplo: temos reservas expressivas a defender. Vamos defendê-las caso se assista a uma erosão de capitais, como se ensaia aqui e ali? Numa economia aberta o risco de fuga está posto a cada dia. Na crise, ele ganha velocidade agressiva, como estamos vendo. O governo não pode assistir à perda de reservas passivamente. Vai se apoiar onde se as reservas se esvaírem?

"Bretton Woods II não ocorrerá. Pelo menos não nas dimensões e no horizonte de urgência colocado hoje para o Brasil".

CM - Não dá para apostar numa solução para a crise?
Braga- Bretton Woods II não ocorrerá. Pelo menos não nas dimensões e no horizonte de urgência colocado hoje para o Brasil. Esse é um balizador que o governo Lula deve incorporar de uma vez por todas. Considerando-se que no horizonte visível não haverá uma reordenação virtuosa do sistema, trata-se de defender o que temos. E o que temos não é desprezível. Esse é o ponto a valorizar. Anulamos o endividamento externo e acumulamos respeitáveis US$ 200 bilhões em reservas. O Brasil vinha crescendo em bom ritmo, o mercado interno se fortalecia; os investimentos mostravam um fôlego há muito desconhecido...

CM - Isso tudo tende a se retrair, os sinais apontam um pouco para essa contração...
Braga - De novo, depende. É caso a caso. O governo Lula a partir da saída do ministro Palocci registrou avanços. Os bancos estatais que antes estavam impedidos de agir agora estão mais ofensivos. Nesta crise, têm gerado crédito para suprir a retração do sistema financeiro privado. De outro lado, os indicadores de inflação estão sob controle; o câmbio que estava defasado foi corrigido – brutalmente, diga-se -. mas foi corrigido pela crise; isso dá certo fôlego às exportações numa hora difícil de contração do comércio internacional.

CM - Tem o PAC despontando; um chão firme de retomada do investimento estatal.
Braga - Tem, tem o PAC. Mas aí as coisas começam a mostrar gargalos. O PAC está lento, ademais de ser insuficiente para garantir uma ação anti-cíclica com as dimensões que a crise parece cobrar. Aí caímos no círculo de ferro criado pela política monetária e o custo fiscal que ela impõe ao Estado e a toda sociedade.

CM - Caímos no impasse da taxa de juro mais alta do mundo?
Braga – Exato. Se não mexer aí o Brasil não escapa do tranco mundial. Ou o governo Lula mexe no BC, portanto na política monetária e fiscal, ou não terá margem de manobra para agir como a turbulência exige.
"Não há justificativa técnica para manter os juros em 13,75% como insiste o BC".

CM - Mas existem obstáculos também. Alega-se em defesa da política do BC que uma mexida forte nos juros induziria a fuga de capitais; a inflação poderia explodir pressionada pelo câmbio; enfim, todo um cenário que amedronta e faz o governo optar pela cautela.
Braga - Vou responder de forma muito simples: isso é terrorismo. Terrorismo a serviço de quem lucra com juros em níveis absurdos. Não há razões de natureza técnica que justifiquem esse cenário. Repito: não há justificativa técnica para manter os juros em 13,75% como insiste o BC. A inflação está baixa e há deflação no mundo. O diferencial entre os nosso juros e os do resto do planeta, que estão caindo, é cada vez mais favorável a uma redução substantiva. Ainda assim permaneceria um bônus ao investidor local. Portanto, a resposta que precisa ser articulada é uma resposta política. É uma escolha do governo e da sociedade. O governo Lula tem trunfos, além dos seus próprios, no campo internacional.

CM - Em que sentido?
Braga - O momento político é favorável a uma ação que mude a política de juros do BC de forma articulada, negociada. Uma renegociação das bases da dívida interna que libere recursos das despesas financeiras do Estado para acelerar o PAC e intensificar o volume de investimentos.

CM – Renegociar a dívida interna com os bancos detentores de títulos?
Braga - Não só, mas também com os grandes investidores, entre eles empresas que, como falamos antes, detém expressivas posições de liquidez. Veja bem, não estou falando em calote. Não. Estamos falando em negociação pactuada. Significa conversar e politizar essa conversa.

CM - Uma ação desse tipo envolveria riscos; deslocamentos de recursos aplicados em títulos para uma corrida ao dólar...
Braga - Por isso disse que o momento político era favorável. O governo tem que negociar, inclusive com o Tesouro de Barack Obama. Esqueçam o FMI e outras instâncias sem poder nem recursos. Deve-se negociar lá, direto com eles. Com o Tesouro norte-americano que se renova em 20 de janeiro.

CM – Qual seria a posição de força do governo Lula para uma empreitada desse tipo?
Braga - O Brasil, como disse, é um dos que têm algo a oferecer. O país dispõe - ainda dispõe - de trunfos. O governo Lula tem cacife político. E tem o que oferecer ao mercado numa negociação em que diz: vou baixar os juros e, em troca, elevar o crescimento da economia e da rentabilidade das empresas. Pode-se adicionar a esse cardápio medidas de incentivo fiscal, como já têm sido feito. Agora, é uma operação de envergadura política e de coragem histórica. Algo dessa importância tem que ser conversado aqui e lá fora. É uma negociação. É sentar com o novo governo dos EUA e colocar as fichas na mesa: - Vamos fazer; o Brasil crescerá em plena crise; isso vai contribuir para reverter a recessão na América do Sul. O conjunto dos encadeamentos regionais interessa aos EUA. Então é isso: vamos fazer, vamos baixar os juros e reforçar investimentos. E vamos impedir a fuga de capitais. Acho que deve ser por aí. Temos chance. E não fazer é esperar que a própria crise nos salve.
(Publicado originalmente em Agência Carta Maior, em 05/12/2008)

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