quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Governo Retardou a Redução dos Juros: Por Que? - parte 1

Artigo-reportagem e entrevista publicados em dezembro de 2008, são bastante elucidativos para o entendimento dos movimentos atuais da economia brasileira.
Especialmente, se levarmos em consideração de que o texto em que se baseiam foi escrito em 1996.
Nossa fonte foi a Fundação Perseu Abramo.

Leitura - Revista Eletrônica

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“Ou o governo mexe no Banco Central e derruba fortemente as taxas de juros ou o antídoto não funciona e seguimos para baixo”, diz, em entrevista à Carta Maior, o economista José Carlos de Souza Braga, professor da Unicamp. Para ele, o argumento conservador em defesa dos juros é "terrorismo puro e simples".

Prof. José Carlos de Souza Braga
No arremate de um texto escrito ainda em 1996 ("Economia e Fetiche da Globalização Capitalista"), José Carlos de Souza Braga, professor do Instituto de Economia da Unicamp, antecipava em 12 anos algumas interrogações que encabeçam agora a agenda da crise econômica mundial. “Estamos diante de qual transição? Qual reforma, muito mais que (re)regulamentação, é necessária? Qual forma de reorganização econômico-social e democrática é almejável? Que tipo de crise-transição é essa que se não for bem encaminhada nos colocará diante de uma ‘neo-barbárie’ da qual a praxis neoliberal e a impotência crítico-propositiva são mero intróito?”

Antecipações arrojadas, a exemplo dessas, costumam percorrem as análises do economista da Unicamp. Braga foi um dos pioneiros a apontar o ovo da serpente nas regras displicentes dos acordos da Basiléia que há cerca de vinte anos prometiam disciplinar os mercados financeiros globalizados. Ele tornou usual a expressão “financeirização do capitalismo”, ao lado de colegas da mesma universidade, como Luiz Gonzaga Belluzzo e o atual presidente do BNDES, Luciano Coutinho, que, em 1998, também escreveram um ensaio demarcador sobre o tema (“Financeirização da riqueza, inflação de ativos e decisão de gastos em economias abertas").

Braga cunharia ainda a expressão “supermercado financeiro”, uma metáfora recorrente na explicação do colapso atual. A emergência do supermercado financeiro refletiria o desmonte das regulações e atribuições específicas que ordenavam o funcionamento dos circuitos do dinheiro a juro, desde 1929 e, com maior amplitude, a partir dos acordos e regras de Bretton Woods, em 1944. O avanço político e econômico das forças ditas liberais nos anos 70 – o golpe militar no Chile, em 1973, seria um dos seus laboratórios avançados - solaparia progressivamente as fronteiras e delimitações do circuito da riqueza líquida, esvaziando-se o poder de controle do Estado sobre ela.

Nos últimos 38 anos – “portanto estamos falando de uma forma de capitalismo mais duradoura que os ‘gold age’, os chamados trinta anos de ouro do sistema baseado no bem-estar social” - ruíram sucessivamente as regras prudenciais de correspondência entre passivos e ativos bancários.

O descasamento entre prazos de operações conexas exacerbou-se. Da mesma forma, esfumaram-se as contrapartidas de capital próprio, que asseguravam e disciplinavam o conjunto das operações bancárias. Da ruína do capitalismo regulado emergiria um sistema sombra, uma montanha desordenada de riqueza fictícia voltada à auto-reprodução.

Em resumo, a lógica tão a gosto dos que insistem em entregar o destino da sociedade aos impulsos instáveis, freqüentemente irracionais, como se vê , dos chamados livre mercados.

A crise sistêmica marca a falência do supermercado financeiro. O capital desregrado e o Estado que nada mais controlava juntam-se agora na tentativa de reverter um colapso sob o olhar perplexo da sociedade, que assiste a uma das mais amplas estatizações da história dos mercados financeiros, paradoxalmente destinada a reconstruí-los. “Os Estados transformaram-se em market markers. Eles estão compondo os mercados novamente. Dragam incansavelmente o entulho tóxico formado por papéis sem demanda , muitos dos quais valem nada, mas sobretudo, não são precificáveis”, diz o economista da Unicamp.

Os Estados, enfim, estão tentando reconstruir a ordem da desordem.

Nesse momento em que gôndolas da riqueza fictícia viram pó e o poder público sopra na tentativa de lhes devolver a vida, as perguntas formuladas pelo economista em 1996 adquirem sua pertinência mais aguda. “Estamos diante de qual transição? Qual reforma, muito mais que regulamentação, é necessária para prevenir uma barbárie?”.

Em entrevista à Carta Maior, o professor Carlos Braga admite que ainda não tem as respostas. Mas ele aperfeiçoou algumas certezas sobre a natureza insuportavelmente instável da sociedade subordinada à exacerbação do capitalismo financeirizado, seja no seu apogeu, ou na agonia sem data-limite.

O economista da Unicamp vai além da mera decifração das origens da crise. Essa etapa, de certa forma, está superada na discussão. Seu questionamento avança para argüir certas ferramentas e pressupostos de “retificação de desvios” que ancoram o grosso das apostas numa volta à normalidade, a seu ver desprovidas de conteúdo histórico.

O ceticismo intelectual apóia-se na convicção de que a supremacia das finanças desreguladas não constituiria um tropeço na dinâmica do capitalismo sob hegemonia norte-americana.

Antes, seria um fator constitutivo, amplo e poderoso de uma dinâmica que não se moveria apenas nas franjas especulativas do mercado. “Essa mesma dinâmica está inscrita também no coração produtivo da engrenagem”, diz Braga.

Mesmo as grandes empresas capitalistas do setor industrial, assim como as grandes corporações da área de serviços introjetaram uma poderosa função financeira ao arsenal da acumulação. “O caixa dessas corporações detém gigantescas fatias de liquidez. Elas são mobilizadas em apostas planetárias pautadas, não mais por um rentismo defensivo, mas ativo. Vimos agora que ele inclui adeptos de envergadura na própria economia brasileira”, diz o economista alfinetando grandes grupos nacionais que fizeram hedge cambial em valor muito acima do que seria necessário para proteger seus negócios. Perderam bilhões de dólares, pressionando agora a taxa de câmbio para saldar seus contratos.

O debate sobre a crise avança em três direções no arremate da conversa de Carta Maior com o professor da Unicamp.

A primeira questiona a natureza da regulação capaz, nas condições atuais do capitalismo, de induzir à “eutanásia do rentista”. Ou seja, para emprestar o termo keynesiano, de fixar balizas que devolvam ao capital a lógica empreendedora materializada em investimentos, emprego e riqueza real. “Se formos considerar a abrangência da financeirização nessa etapa histórica, talvez tivéssemos que falar em “eutanásia do capitalismo e não do rentismo”, ironiza Braga. Esse é o horizonte histórico mais amplo. Mas existe a conjuntura e os fatos em curso. Ambos cobram respostas imediatas do governo, ações políticas das lideranças sociais e alternativas práticas dos intelectuais.

Trata-se de saber, por exemplo, até que ponto projetos de integração regional, coordenados por governos de recorte progressista, teriam densidade para abrir um espaço de autonomia relativa na película sufocante estendida pelas finanças globais, urbi et orbe, sob hegemonia norte-americana. A possibilidade de se construir na periferia do capitalismo alianças de desenvolvimento produtivista, segundo Braga, depende de uma coordenação progressista, capaz de superar a hegemonia de elites locais historicamente acasaladas à potência norte-americana.

O terceiro ponto questiona a urgência brasileira diante da crise. O governo Lula tomou diferentes medidas de ampliação da liquidez para retardar, ou mitigar, o impacto da recessão mundial e o professor da Unicamp reconhece o esforço mas aponta lacunas . “O Brasil vinha crescendo a mais de 5% ao ano com forte expansão de emprego e, sobretudo, níveis de investimentos acima da taxa de aumento do PIB. Acumulamos reservas, o que é de extrema importância. Mas continuamos manietados por um triângulo de ferro. Seu eixo principal é a taxa de juros; os outro vértices, a ela associados, são o custo da dívida pública que reduz o fôlego fiscal do Estado e o câmbio fora de lugar. Esse, a crise já destravou. Mas é insuficiente”, insiste o professor da Unicamp para disparar em seguida: “Ou o governo mexe no Banco Central e derruba fortemente as taxas de juros ou o antídoto não funciona e seguimos para baixo”.

Confrontado com a hipótese de que uma brusca alteração nos níveis dos juros poderia gerar uma fuga de capitais e um retorno da inflação, Braga não hesita: “Não há nenhuma razão técnica que aponte para isso. Temos reservas expressivas; a inflação declina; o horizonte mundial é de deflação. O diferencial de juros entre nós e o planeta é enorme; portanto, há espaço para reduzir e ainda manter certa vantagem.

O argumento conservador em defesa dos juros é terrorismo puro e simples. O governo deve ter coragem política para mexer no BC. Isso implica conversar com o outro lado e a hora é das mais que favoráveis. É hora de politizar o assunto, aqui e lá fora. Vivemos uma indeterminação econômica e ideológica; é hora de dizer: - Vamos baixar as taxas e impedir a fuga de capitais; temos algo em troca a oferecer aos investidores: crescimento econômico. O Brasil tem trunfos. O governo precisa agir. Essa é a hora”.
(Publicado originalmente em Agência Carta Maior, em 05/12/2008)

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