Artigo-reportagem e entrevista publicados em dezembro de 2008, são bastante elucidativos para o entendimento dos movimentos atuais da economia brasileira.
Especialmente, se levarmos em consideração de que o texto em que se baseiam foi escrito em 1996.
Nossa fonte foi a Fundação Perseu Abramo.
Leitura - Revista Eletrônica
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“Ou o governo mexe no Banco Central e
derruba fortemente as taxas de juros ou o antídoto não funciona e
seguimos para baixo”, diz, em entrevista à Carta Maior, o economista
José Carlos de Souza Braga, professor da Unicamp. Para ele, o argumento
conservador em defesa dos juros é "terrorismo puro e simples".
Prof. José Carlos de Souza Braga |
Antecipações arrojadas, a exemplo dessas, costumam percorrem as
análises do economista da Unicamp. Braga foi um dos pioneiros a apontar o
ovo da serpente nas regras displicentes dos acordos da Basiléia que há
cerca de vinte anos prometiam disciplinar os mercados financeiros
globalizados. Ele tornou usual a expressão “financeirização do
capitalismo”, ao lado de colegas da mesma universidade, como Luiz
Gonzaga Belluzzo e o atual presidente do BNDES, Luciano Coutinho, que,
em 1998, também escreveram um ensaio demarcador sobre o tema
(“Financeirização da riqueza, inflação de ativos e decisão de gastos em
economias abertas").
Braga cunharia ainda a expressão “supermercado financeiro”, uma
metáfora recorrente na explicação do colapso atual. A emergência do
supermercado financeiro refletiria o desmonte das regulações e
atribuições específicas que ordenavam o funcionamento dos circuitos do
dinheiro a juro, desde 1929 e, com maior amplitude, a partir dos acordos
e regras de Bretton Woods, em 1944. O avanço político e econômico das
forças ditas liberais nos anos 70 – o golpe militar no Chile, em 1973,
seria um dos seus laboratórios avançados - solaparia progressivamente as
fronteiras e delimitações do circuito da riqueza líquida, esvaziando-se
o poder de controle do Estado sobre ela.
Nos últimos 38 anos – “portanto estamos falando de uma forma de
capitalismo mais duradoura que os ‘gold age’, os chamados trinta anos de
ouro do sistema baseado no bem-estar social” - ruíram sucessivamente as
regras prudenciais de correspondência entre passivos e ativos
bancários.
O descasamento entre prazos de operações conexas
exacerbou-se. Da mesma forma, esfumaram-se as contrapartidas de capital
próprio, que asseguravam e disciplinavam o conjunto das operações
bancárias. Da ruína do capitalismo regulado emergiria um sistema sombra,
uma montanha desordenada de riqueza fictícia voltada à auto-reprodução.
Em resumo, a lógica tão a gosto dos que insistem em entregar o destino
da sociedade aos impulsos instáveis, freqüentemente irracionais, como se
vê , dos chamados livre mercados.
A crise sistêmica marca a falência do supermercado financeiro. O
capital desregrado e o Estado que nada mais controlava juntam-se agora
na tentativa de reverter um colapso sob o olhar perplexo da sociedade,
que assiste a uma das mais amplas estatizações da história dos mercados
financeiros, paradoxalmente destinada a reconstruí-los. “Os Estados
transformaram-se em market markers. Eles estão compondo os mercados
novamente. Dragam incansavelmente o entulho tóxico formado por papéis
sem demanda , muitos dos quais valem nada, mas sobretudo, não são
precificáveis”, diz o economista da Unicamp.
Os Estados, enfim, estão tentando reconstruir a ordem da desordem.
Nesse momento em que gôndolas da riqueza fictícia viram pó e o poder
público sopra na tentativa de lhes devolver a vida, as perguntas
formuladas pelo economista em 1996 adquirem sua pertinência mais aguda.
“Estamos diante de qual transição? Qual reforma, muito mais que
regulamentação, é necessária para prevenir uma barbárie?”.
Em entrevista à Carta Maior, o professor Carlos Braga admite que
ainda não tem as respostas. Mas ele aperfeiçoou algumas certezas sobre a
natureza insuportavelmente instável da sociedade subordinada à
exacerbação do capitalismo financeirizado, seja no seu apogeu, ou na
agonia sem data-limite.
O economista da Unicamp vai além da mera
decifração das origens da crise. Essa etapa, de certa forma, está
superada na discussão. Seu questionamento avança para argüir certas
ferramentas e pressupostos de “retificação de desvios” que ancoram o
grosso das apostas numa volta à normalidade, a seu ver desprovidas de
conteúdo histórico.
O ceticismo intelectual apóia-se na convicção de que a supremacia das
finanças desreguladas não constituiria um tropeço na dinâmica do
capitalismo sob hegemonia norte-americana.
Antes, seria um fator
constitutivo, amplo e poderoso de uma dinâmica que não se moveria apenas
nas franjas especulativas do mercado. “Essa mesma dinâmica está
inscrita também no coração produtivo da engrenagem”, diz Braga.
Mesmo as
grandes empresas capitalistas do setor industrial, assim como as
grandes corporações da área de serviços introjetaram uma poderosa função
financeira ao arsenal da acumulação. “O caixa dessas corporações detém
gigantescas fatias de liquidez. Elas são mobilizadas em apostas
planetárias pautadas, não mais por um rentismo defensivo, mas ativo.
Vimos agora que ele inclui adeptos de envergadura na própria economia
brasileira”, diz o economista alfinetando grandes grupos nacionais que
fizeram hedge cambial em valor muito acima do que seria necessário para
proteger seus negócios. Perderam bilhões de dólares, pressionando agora a
taxa de câmbio para saldar seus contratos.
O debate sobre a crise avança em três direções no arremate da conversa de Carta Maior com o professor da Unicamp.
A primeira questiona a natureza da regulação capaz, nas condições
atuais do capitalismo, de induzir à “eutanásia do rentista”. Ou seja,
para emprestar o termo keynesiano, de fixar balizas que devolvam ao
capital a lógica empreendedora materializada em investimentos, emprego e
riqueza real. “Se formos considerar a abrangência da financeirização
nessa etapa histórica, talvez tivéssemos que falar em “eutanásia do
capitalismo e não do rentismo”, ironiza Braga. Esse é o horizonte
histórico mais amplo. Mas existe a conjuntura e os fatos em curso. Ambos
cobram respostas imediatas do governo, ações políticas das lideranças
sociais e alternativas práticas dos intelectuais.
Trata-se de saber, por exemplo, até que ponto projetos de integração
regional, coordenados por governos de recorte progressista, teriam
densidade para abrir um espaço de autonomia relativa na película
sufocante estendida pelas finanças globais, urbi et orbe, sob hegemonia
norte-americana. A possibilidade de se construir na periferia do
capitalismo alianças de desenvolvimento produtivista, segundo Braga,
depende de uma coordenação progressista, capaz de superar a hegemonia de
elites locais historicamente acasaladas à potência norte-americana.
O terceiro ponto questiona a urgência brasileira diante da crise. O
governo Lula tomou diferentes medidas de ampliação da liquidez para
retardar, ou mitigar, o impacto da recessão mundial e o professor da
Unicamp reconhece o esforço mas aponta lacunas . “O Brasil vinha
crescendo a mais de 5% ao ano com forte expansão de emprego e,
sobretudo, níveis de investimentos acima da taxa de aumento do PIB. Acumulamos reservas, o que é de extrema importância. Mas continuamos
manietados por um triângulo de ferro. Seu eixo principal é a taxa de
juros; os outro vértices, a ela associados, são o custo da dívida
pública que reduz o fôlego fiscal do Estado e o câmbio fora de lugar.
Esse, a crise já destravou. Mas é insuficiente”, insiste o professor da
Unicamp para disparar em seguida: “Ou o governo mexe no Banco Central e
derruba fortemente as taxas de juros ou o antídoto não funciona e
seguimos para baixo”.
Confrontado com a hipótese de que uma brusca alteração nos níveis dos
juros poderia gerar uma fuga de capitais e um retorno da inflação,
Braga não hesita: “Não há nenhuma razão técnica que aponte para isso.
Temos reservas expressivas; a inflação declina; o horizonte mundial é de
deflação. O diferencial de juros entre nós e o planeta é enorme;
portanto, há espaço para reduzir e ainda manter certa vantagem.
O
argumento conservador em defesa dos juros é terrorismo puro e simples. O
governo deve ter coragem política para mexer no BC. Isso implica
conversar com o outro lado e a hora é das mais que favoráveis. É hora de
politizar o assunto, aqui e lá fora. Vivemos uma indeterminação
econômica e ideológica; é hora de dizer: - Vamos baixar as taxas e
impedir a fuga de capitais; temos algo em troca a oferecer aos
investidores: crescimento econômico. O Brasil tem trunfos. O governo
precisa agir. Essa é a hora”.
(Publicado originalmente em Agência Carta Maior, em 05/12/2008)
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