sábado, 3 de novembro de 2012

Economia e Fetiche da Globalização Capitalista

Este é o artigo do Professor Souza Braga, que originou nossas duas últimas postagens.

Leitura - Revista Eletrônica

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Economia e Fetiche da Globalização Capitalista
Autor
José Carlos de Souza Braga

Professor Souza Braga
A globalização é filha legítima da lógica e da história político-econômica do capital. A aflição ideológica, contudo tem provocado mais calor do que luz sobre o tema. Partimos da hipótese de que para sua compreensão é crucial examiná-la como culminância e paroxismo do fetiche da mercadoria plena que é o capital e, sobretudo, o capital a juros- venha ele da grande empresa industrial, dos bancos, dos donos da terra, ou das poupanças financeiras pessoais. Seu movimento é o centro da globalização financeira que agora preocupa tanto o Fundo Monetário Internacional quanto o G-7, Grupo dos Sete países mais desenvolvidos. Indiretamente manifestam que estamos diante de uma instabilidade estrutural, intrínseca ao próprio sistema, registram que é necessário regulamentar os mercados financeiros globalizados, que os bancos serão o próximo epicentro da crise, que as consequências podem ser catastróficas.
 
A crer nas intenções manifestas, finalmente, para que surjam providências, talvez não mais seja necessário esperar um colapso como o da década de 30, coisa que os críticos mais angustiados estão a prever, sem "sucesso", há mais de dez anos.

A perversidade da instabilidade contemporânea tem sido justamente a de, por mais de 25 anos- desde pelo menos 1971, quando o dólar deixou de ser conversível em ouro-, combinar alta especulação financeira globalizada com um mínimo de crescimento, coisa capaz de evitar o colapso, garantir em geral- com o apoio dos Tesouros Nacionais e dos Bancos Centrais- os lucros de todo tipo e arrebentar com a maior parte das periferias sociais e geográficas. Este tem sido o paradoxo da globalização: nem colapso, nem desenvolvimento.

A "catástrofe" da segunda metade do século XX já está aí para quem quiser ver. Sua manifestação geral é a estagnação econômica relativa nos países avançados, desde os anos 70 em comparação com os ¨dourados¨ anos 50 e 60.

É o declínio relativo da força monetária, industrial, comercial, e fiscal da potência ainda hegemônica - os Estados Unidos - cujos assalariados empobreceram e deserdados se sentem do "sonho americano".

É o desemprego estrutural da Europa e a difícil realidade de sua União. É a tendência à ¨desorganização¨ nos anos 90, expressa pela recessão pós-especulação, no interior daquele que já foi considerado um caso exemplar de capitalismo organizado- o Japão.

É a mercantilização desorganizada e selvagem, seivada por consultorias "globais", da Rússia. É a desindustrialização da América Latina posterior à crise da dívida externa e coetânea da estabilização a qualquer preço, baseada em âncoras artificiais, sobretudo a cambial.

É a África dominada pelos conflitos tribais e assim indesejável aos investidores e contemplável passivamente pelas elites cosmopolitas que, neste caso, abdicam de qualquer ¨missão civilizatória¨.

É, enfim, uma economia fetichizada onde a circulação monetário-financeira ampliada em vertiginosa espiral guarda tênue correspondência com os fundamentos econômicos esmaecidos do investimento produtivo, da renda (lucros operacionais e salários), do emprego, da infraestrutura econômica e social.

É a falência fiscal dos Estados nacionais cujas dívidas não param de crescer porque estão financeirizadas, uma vez que seus títulos públicos alimentam o capital a juros globalizado e possuído por elites de diferentes rincões.

Deixemos de lado a leitura liberal da globalização que a vê como sinfonia do equilíbrio geral do sistema de mercado, uma vez transposto o obstáculo do Estado interventor, regulador e promotor do "bem-estar social".

Esta leitura é a sanção racionalizada do fetiche, com cinismo ou ingenuidade, pela qual a mercadoria capital é matéria capaz de encarnar virtudes mágicas para o equilíbrio planetário e para a harmonia de uma nova ¨idade de ouro¨. Ela acaba de ser desautorizada por gente insuspeita do FMI e do G-7.

Noutra perspectiva, a essa altura do jogo, tampouco é suficiente o ataque à leitura e às recomendações de política do novo liberalismo; o que se requer é o exame crítico dos fenômenos concretos que nas últimas décadas já tornaram a globalização, possivelmente, a nova forma dinâmico-estrutural do capitalismo.

Ela é resultado de mutações estruturais no movimento secular de internacionalização. Por isso é forma nova da evolução capitalista e não apenas uma outra fase da internacionalização. O fato de o capitalismo ter sido sempre mundial no sentido da interconexão das economias relevantes, através do fluxo de mercadorias, capital e serviços, não deve conduzir ao equívoco de que a globalização é um fenômeno antigo. Antiga é a internacionalização dos mercados domésticos mesmo quando ocorriam industrializações nacionais comandadas a partir do Estado.

A globalização é o ápice- visível neste tempo histórico do desenvolvimento capitalista e de sua irracionalidade. Irracional, porque, como dito acima, projeta um descolamento crescente dos valores mercantis face aos fundamentos econômicos, registra uma sociabilidade cada vez mais problemática, e transtorna as noções articuladas de território-patrimônio e Estado-Nação. Trata-se, contudo, de uma irracionalidade inteligível desde a lógica mesma do capital e de seu movimento histórico por libertar-se dos controles que a sociedade tenta lhe impor e inteligível, "ça va sans dire", pela política pensada amplamente, como antídoto ao economicismo.

É no âmbito deste quadro geral que se impõe caracterizar em que sentido existe uma globalização enquanto realidade efetiva alguns de cujos traços econômicos fundamentais são:

1 - As grandes empresas industriais e financeiras componentes da tríade dominante - Estados Unidos, Japão e Alemanha - estão implementando a rede do mercado mundial em produtos, tecnologia, dinheiro e finanças. Com isto existe de fato uma Globalização dos Negócios que é inexorável e da qual são compelidas a participar todas as empresas, inclusive as do capitalismo periférico, sob pena de eliminação pela concorrência. Esta é uma determinação que implica redefinição da territorialidade econômica a partir dos interesses do mundo dos negócios. O território relevante é o global, mundial, a partir de um caráter nacional, unicamente se isto for possível. Isto é, se existe uma base nacional calcada em consistência macroeconômica e em fundamentos industriais e tecnológicos a empresa globaliza-se mantendo o controle acionário (propriedade) e seus interesses de modo solidário com a nacionalidade. Esta é uma situação vigente, hoje, apenas para as empresas da tríade (e nos EUA já nem tanto…). Do contrário, a empresa globaliza-se e ademais se despede de seus vínculos nacionais. Na economia do país como um todo vai encolhendo a parcela de empresas financeiras e não-financeiras de propriedade nacional e neste sentido a desnacionalização do patrimônio é muito mais radical do que a que correspondia à internacionalização dos mercados domésticos.

Portanto, neste sentido, o surgimento de uma outra territorialidade econômica em que o espaço e o mercado nacionais estão subordinados ao espaço e mercado globais é resultado da concorrência inter-capitalista, liberta de entraves regulatórios. As grandes empresas líderes deste processo são multifuncionais, multisetoriais e multinacionais. Isto é, ocupam-se ao mesmo tempo das funções produtivas, comerciais e financeiras; alocam seus investimentos em diferentes produtos, confeccionando desde o bem de consumo descartável até o bem de capital mais sofisticado; atuam em diferentes mercados nacionais utilizando-os, porém, segundo sua estratégia para o mercado global. Como tal organizam-se enquanto verdadeiras corporações capitalistas compostas por empresas com múltiplas finalidades. Com a globalização, agora sim, é para valer: o capital não tem pátria! Estas características do movimento moderno das empresas do grande capital são a verdadeira causa causans da Globalização.

Neste sentido, a desregulamentação dos mercados é uma mera resultante das pressões das grandes empresas da tríade, em especial, e originalmente das norte-americanas, por mobilidade e flexibilidade de seu capital, sobretudo desde o período de instabilidades aberto em 1971. Aliás é da natureza do dinamismo capitalista que seus agentes dominantes tratem de destruir os quadros regulatórios vigentes quando um período longo de expansão dá sinais de esgotamento, e eles tratam de abrir espaços e práticas para que sua riqueza-capital possa fluir. É recorrente, desde que a sociedade lançou-se à empreitada de controlar a economia capitalista- ¨mão visível¨ versus ¨mão invisível¨- a sequência regulação-regulamentação, reforma institucional, inovações das práticas privadas de acumular riqueza, destruição dos marcos regulatórios.

2 - Moeda, Crédito-Finanças e Patrimônio (sobretudo o mobiliário) orientam as decisões globais de alocação da poupança financeira mundial. O surgimento do euro mercado de moedas nos anos 60 foi o embrião da movimentação do dinheiro como capital a juros em crescente autonomização mundo afora, em escapada crescente aos controles dos bancos centrais. Está aí a gênese da globalização financeira que antecedeu as demais formas de globalização. É o início da fuga dos capitais por valorizar-se libertos dos marcos regulatórios posteriores aos anos 30 e aos acordos de Bretton-Woods que moldaram a "golden age". De fato, tal fuga é já uma resposta dos capitais bancários e industriais, de origem norte-americana, inicialmente, às barreiras que aqueles marcos regulatórios impunham emblematizadas nos limites às taxas de juros e nas paridades cambiais relativamente fixas. A instabilização americana marcada pela inflação emergente, pela estagnação econômica relativa e a ocupação dos mercados nacionais internacionalizáveis, em países do centro e da periferia, adicionaram-se ao movimento anterior para detonar uma concorrência industrial e financeira generalizada por parte das multinacionais.

O modo pelo qual o capitalismo tem funcionado nos últimos 25 anos, aproximadamente, revela a existência de um processo autonomizado do dinheiro e das finanças(capitalização financeira) que corre em paralelo ao processo de geração de renda pela produção (lucros operacionais e salários), processando-se contudo sob uma dominância financeira que constitui uma verdadeira financeirização da riqueza. Aquela capitalização não é apenas um período especulativo exacerbado e precursor ultimo da grande crise de desvalorização, ela é um elemento da estrutura, essencial mesmo à gestão e realização da riqueza e gerador de uma instabilidade característica. Há incerteza monetária num mundo de fiat money, de moedas fiduciárias- emitidas pelos Estados Nacionais- nem sempre baseadas em sólidos fundamentos econômicos e convivendo com dinheiros privados (ativos financeiros de tipo quase-moeda). À escala global difunde-se esta incerteza num contexto plurimonetário em que nenhum Dinheiro ocupa o ¨centro¨- como coordenador da liquidez e das finanças- reforçando-se portanto os desequilíbrios entre os balanços de pagamentos. É inescapável uma elevada volatilidade cambial interativa com os ups and downs das taxas de juros e das taxas de capitalização financeira (nas bolsas de valores sobretudo) que reforçam a natureza especulativa e fictícia do cálculo e da riqueza capitalista contemporânea.

A financeirização da riqueza a níveis nacional e internacional explicita-se numa crescente defasagem entre os valores dos papéis representativos da riqueza (dinheiros conversíveis internacionalmente e ativos financeiros em geral- paper wealth) e os valores dos bens e serviços assim como das bases técnico-materiais em que se funda a reprodução da vida e da sociedade (fundamentos econômicos).

Esta é uma nova dimensão estrutural do capitalismo que tendo sido inaugurada nos Estados Unidos foi a partir do euro mercado generalizando-se mundo afora, globalizando-se sob diferentes ritmos e resistências, mas atingindo, nos anos 80 e 90, até mesmo os capitalismos organizados, como o Japão. A internacionalização vai então se metamorfoseando em globalização dos negócios financeiros e industriais.

3- No núcleo desta metamorfose está uma interdependência patrimonial dos proprietários dos principais países industrializados pela qual seus ativos e passivos estão de tal forma conectados a ponto de tornar a gestão público-privada da riqueza forçosamente interativa e supra-nacional ainda que não tenha conduzido à coordenação virtuosa que é agora supostamente almejada pelo G-7.

Tal interdependência transnacionalizada dá surgimento a uma "macroestrutura financeira global" (público-privada) formada pelos bancos centrais, pelos grandes bancos internacionais, por diversas organizações financeiras (corretoras, seguradoras, fundos de investimento), pelas grandes corporações industriais e pelos proprietários de grandes fortunas, todos operando em várias praças financeiras a valorização e desvalorização das moedas e dos ativos financeiros, títulos de propriedade representativos da riqueza.

4- As grandes empresas com seu enorme poder financeiro manejam o dinheiro tanto na circulação industrial quanto na circulação financeira que passam a ser domínios altamente conexos, ao contrário do passado em que a primeira era adstrita às empresas industriais enquanto a segunda aos bancos.

Este monitoramento do dinheiro e das finanças, no que tange à geração e gestão de liquidez, dá àquelas empresas a possibilidade de não exercer plenamente os direitos de propriedade de seus títulos financeiros, quando existe ameaça de corrida desvalorizadora, coisa que se acontecesse ocasionaria um gigantesco crash financeiro. Este poder privado de liquidez explica em parte porque as grandes flutuações dos mercados acionários não se transformaram em quebras generalizadas, até porque, embora, sempre os bancos centrais compareçam com a liquidez de sua moeda central, esta liquidez pública já não é onipotente face à absurda dimensão da riqueza financeira.

5- Relacionado ao ponto anterior está a transformação das finanças públicas em reféns deste processo que vai ao ponto de retirar-lhes a capacidade de promover o gasto autônomo dinamizador do investimento, da renda e do emprego; de tornar financeirizada a dívida pública, que como tal, sanciona os ganhos financeiros privados, amplia a financeirização geral dos mercados, a cuja especulação os bancos centrais são cada vez mais vulneráveis.

6- Os preços financeiros, incluindo o dos ativos de capital cotados nas bolsas de valores, e o consequente sancionamento dos valores da riqueza em geral são crescentemente função das ¨regras¨da concorrência intercapitalista em todos os mercados, das ações dos bancos centrais em conjunto com as organizações financeiras privadas e, finalmente, do arbítrio do Estado ou dos Estados nacionais relevantes, na instável e incerta demarcação de quão elástica pode ser a capitalização financeira dos ativos, a financeirização, a ¨dança¨das moedas-chave, as flutuações das taxas de juros e de câmbio, bem como qual o limite, nas crises, do processo de desvalorização e de desordem.

7- O caráter paradoxal da dinâmica que, por um lado, sendo dotada de potencia financeira, tecnológica e de liquidez estratégica- distinta de uma preferência momentânea pela liquidez- viabiliza dinamismo mínimo à renda nacional e à acumulação de capital produtivo, afastando em princípio a ameaça de grande depressão. Ao mesmo tempo, promove a folia financeira- a capitalização fictícia- que redunda em crises cambiais, em dias de pânicos e manias (ainda que não de crashes) nos mercados de capitais do mundo, em perdas importantes de reservas internacionais pelos bancos centrais, em problematização do desenvolvimento das forças produtivas, entendida como limitação a um amplo e generalizado crescimento com inovações tecnológicas, difundível homogeneamente por setores e países.

8- Explicitação da dispensabilidade da mão-de-obra e das limitações à ampliação dos salários reais como fonte de reprodução da vida, consubstanciada no desemprego estrurural e nas disparidades de renda, de riqueza e de chances de sociabilidade.

9- Redução dos graus de liberdade na reestruturação das economias periféricas no atual quadro da divisão internacional do trabalho, da renda e da riqueza, impondo à maioria destes países tendências disruptivas.

Assim esta nova forma dinâmico-estrutural do capitalismo deixaria as seguintes questões: não terá sido já tão aprofundado o processo de mobilidade, libertação e multiplicação ilusória do valor-capital, mercadoria-fetiche, que sua função como ordenador de uma economia com chances de sociabilidade- convivência democrática e civilizada, acesso ao emprego e à renda, expansão vital e cultural- já esteja experimentando histórica e socialmente seus limites? E dessa forma a regulamentação não será apenas uma tímida aproximação à "ponta do iceberg" cuja totalidade por ela não se deixará "resolver"? Estamos diante de qual transição? Qual reforma, muito mais que re-regulamentação, é necessária? Qual forma de reorganização econômico-social e democrática é almejável? Que tipo de crise-transição é essa que se bem encaminhada não for, nos colocará diante de uma "neo-barbárie" da qual a práxis "neoliberal" e a impotência crítico-propositivo são mero intróito? Pragmaticamente: é possível regulamentar o capital globalizado sem intervir na própria lógica da concorrência e do afã de acumular por acumular, que é contemporaneamente dominado pela riqueza abstrata, monetário-financeira?
(Fonte: www.eco.unicamp.br)

José Carlos de Souza Braga é professor-doutor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), pesquisador-sênior do Instituto de Economia do Setor Público da Fundap (Fundação do Desenvolvimento Administrativo), pós-doutorado pela Universidade da Califórnia (Berkeley, EUA) e secretário-especial de Abastecimento e Preços do Ministério da Fazenda (1986/1987).

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