quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A Globalização Capitalista Desmistificada

Na esteira de redescobrir algo do passado que continua atual, vai um outro texto do Prof. Souza Braga, que ao olhar para ontem, entende-se perfeitamente o dia de hoje.
Leitura - Revista Eletrônica

A Globalização Capitalista Desmistificada
Autor: José Carlos de Souza Braga

O ano de 1997 determinou a desmistificação da globalização capitalista como promotora da convergência de todos os países em direção à prosperidade. Ao contrário, os eventos do segundo semestre daquele ano e do início de 1998 são evidências do quanto o capitalismo globalizado pode instabilizar a economia mundial e de como as capacidades de resposta à desordem iminente são muito diferentes, nos países centrais e nos países periféricos, sendo que nestes revela-se patente como a própria autonomia na formulação da política econômica vai ficando comprometida.

Pânicos e desvalorizações de riqueza mobiliária e imobiliária vêm ocorrendo nas diferentes economias desde a década de 60, quando a instabilidade financeira americana requereu, em 1966, a primeira intervenção do Fed como emprestador de última instância desde a II Guerra.

Agora, entretanto, estamos assistindo a um fenômeno verdadeiramente mundial em que simultâneamente desvalorizam-se ações em distintas bolsas de valores, as moedas dos países "emergentes" da Ásia colapsam, desdobram-se impactos nas órbitas produtivas de diversas economias bem como no comércio internacional e configura-se a iminência, ainda que não o determinismo, de um "colapso global". Para evita-lo, bancos centrais, tesouros nacionais, organismos multilaterais e empresas financeiras têm se mobilizado para fornecer "empréstimos de última instância" cujos custos e consequências em termos econômicos e sociais podem mostrar-se preocupantes.

Esses acontecimentos estão revelando o potencial de desordem da dinâmica que se vem implantando, nas últimas décadas, sob o impulso da competição entre grandes grupos multinacionais e o patrocínio da hegemonia americana na difusão das políticas de desregulamentação dos mercados.

A manifestação mais evidente dessa globalização é justamente a interdependência dos sistemas financeiros nacionais num contexto de crescente liberalização do movimento de capitais.

É esta liberdade de ação que engendrou um mercado financeiro própriamente mundial através do qual se propagam movimentos especulativos tanto para a criação de riqueza fictícia (no sentido de ser desproporcional aos movimentos reais da economia) quanto para a sua destruição.

Na atual conjuntura, os ataques especulativos às moedas asiáticas sobrevalorizadas propagaram-se para a bolsa de Nova York, a despeito dos fundamentos da economia americana encontrarem-se em "bom estado": baixa inflação, crescimento continuado, deficit público cadente, pouco desemprego aparente. Contudo, ocorria nessa bolsa uma extremada valorização das ações que acabou afetada a partir de Hong Kong, apenas um dentre tantos instabilizadores globais.

Alan Greenspan, presidente do Fed, resumiu o problema: "Se não fossem os acontecimentos no Sudeste Asiático, alguma outra coisa teria provocado uma reavaliação" (Discurso perante o Comitê Econômico Conjunto do Congresso dos EUA).

A economia vive sob permanente avaliação que é conduzida por uma lógica financeira geral de lucratividade. As grandes corporações industriais e as organizações financeiras manejam uma massa de ativos financeiros e de moedas que compõem suas estratégias de valorização ao lado de seus ativos operacionais.

Assim, além das taxas de retorno nos investimentos produtivos, as taxas de câmbio, as taxas de juros e os índices de valorização das ações são "parâmetros" considerados na rentabilidade financeira geral. Num mundo de livre movimento de capitais e de taxas de câmbio flexíveis, aqueles atores efetuam movimentos de "poupança financeira", em consonância com suas expectativas mutáveis, que impactam fortemente os mercados cambiais, acionários e de crédito em geral, mundo afora.

Contemporâneamente essas organizações privadas detêm um poder financeiro e de liquidez que ultrapassa o de cada banco central isoladamente. Desta maneira, as inconsistências macroeconômicas existentes nas economias periféricas as tornam alvos fáceis, mesmo quando seus bancos centrais têm volumes de reservas significativos.

Diante de déficits de conta corrente no balanço de pagamentos e moedas sobrevalorizadas tais economias expõem-se a ataques especulativos e fugas de capitais que podem reduzir suas reservas rápidamente, mesmo que a elevação brutal das taxas de juros domésticas seja utilizada como derradeiro recurso.

Em outras palavras, as economias que não detêm moedas conversíveis internacionalmente, correm sérios riscos de desordem quando pretendem encobrir sua fragilidade estrutural pela via do câmbio sobrevalorizado, de taxas de juros elevadas e de acúmulo de reservas internacionais. Apenas os bancos centrais dos países detentores de moedas conversíveis- rigorosamente, os membros da tríade, Estados Unidos, Japão e Alemanha- e, assim mesmo, apelando para esforços de coordenação, são capazes de enfrentar ataques especulativos contra suas moedas e seus mercados financeiros.

A realidade efetiva é uma globalização dos negócios no seio da qual as nações ocupam papéis diferenciados e muito heterogêneos. As nações que compõem a tríade são aquelas de onde se originam os grandes grupos econômicos que comandam a globalização da produção e das finanças.

Em última análise é a força destes grupos que torna as moedas de seus respectivos países conversíveis internacionalmente, ao mesmo tempo que tal força apoia-se na política econômica de seus Estados Nacionais empenhados, de acordo com seus arranjos institucionais, em assegurar esquemas de financiamento, bases para o desenvolvimento técnico-produtivo e políticas de comércio externo. Esses são os países que persistem na liderança econômico-financeira mundial, ainda que experimentem percalços desde que findou-se a era de grande crescimento, no início dos anos 70. Por essas razões são os que ao lado dos demais membros da OECD deverão ser menos atingidos caso as turbulências atuais continuem presentes mas não convirjam para um colapso como o da década dos 30.

Esse cenário de instabilidade global pode conduzir a crescentes dificuldades nas periferias asiática e latino-americana, ao mesmo tempo em que nos países avançados persistam taxas mínimas de crescimento, razoável estabilidade de preços, déficits e dívidas administráveis, ainda que com desemprego elevado.

Desdobra-se uma perversa globalização capitalista no sentido de que os países avançados constituiriam entre si uma economia mundial cada vez mais integrada pela ação dos grupos multinacionais e suas estratégias "técnico-financeiras", ensejando investimentos voltados para estes mesmos países que constituiriam o espaço "dinâmico" de consolidação da demanda efetiva mundial. Os países periféricos estariam submetidos a sucessivas rodadas de ajustes fiscais, cambiais e de balanço de pagamentos (em função dos déficits em conta corrente) ao longo dos quais o dinamismo de suas economias seria posto em questão.

Não se deve descartar contudo a hipótese de que a instabilidade se agrave também nos países centrais dadas as características da gestão da riqueza. Com a liberalização dos controles nacionais e internacionais os governos destes países também vêm perdendo a capacidade de impor disciplina financeira aos agentes e mercados, a tal ponto que a riqueza mobiliária e patrimonial tem obtido, como já salientamos, autonomia crescente face à riqueza produtiva.

Os valores dos ativos financeiros vêm mantendo-se fictíciamente acima dos ativos reais por períodos longos, sofrem deflações e depois retomam a expansão autonomizada e fictícia. É por isso que os indicadores têm evidenciado o crescimento de operações cambiais acima das necessidades do comércio internacional; a escalada do percentual de transações transnacionais com títulos títulos financeiros em relação ao PIB; a expressiva participação dos lucros financeiros nos lucros totais das corporações industriais.

Isto significa a consolidação de um rentismo institucionalizado do qual participam ativamente os grandes grupos empresariais, o sistema financeiro, os grandes proprietários, num processo que acaba envolvendo o próprio Estado. Este é levado a sancionar o movimento atuando como emprestador de última instância para evitar o colapso sistêmico e colocando títulos de dívida pública que funcionam como garantia do processo de securitização. Se o colapso é evitado, paga-se, entretanto, ao mesmo tempo o preço de ver relançada a dinâmica de valorização financeira.

Nos Estados Unidos, após a queda de janeiro de 1987, o índice Dow Jones da bolsa de valores teve tendência ascendente que levou-o do nível inferior a 2000 pontos até o pico de 8259,31 pontos, em 6 de agosto de 1997, quando começou a queda que gerou o pânico de 28 de outubro. Neste período, a economia americana foi o paradigma da valorização financeira autonomizada, atraindo sucessivas advertências do presidente do Fed.

Este movimento fundou-se no papel hegemônico dos Estados Unidos na globalização capitalista em que os títulos de sua dívida pública funcionam como ativo preferencial, com base no que as políticas de juros e de câmbio, conduzidas pelo Fed, garantem a preeminência do dólar. Compreensivelmente, o processo de securitização com ativos financeiros globalizados operando como quase-moedas privadas segue tendo o dinheiro americano como referência primordial.

Sustentado nestes pilares monetário-financeiros os Estados Unidos contornaram a crise de 1987 sem sofrer impactos em sua economia real e prosseguiram atraindo investimentos produtivos e "poupança financeira" mundial para seu espaço econômico nacional transnacionalizado.

O Japão, ao contrário, não se recuperou até hoje do episódio especulativo que culminou com a desvalorização na bolsa e no mercado de imóveis, em 1990, e segue numa recessão ao longo da qual o banco central cria "engenharias financeiras" para sanear bancos, "securities houses" e empresas patrimonialmente fragilizadas.

Finalmente, ao longo desse ano, o governo japonês será forçado a implementar empréstimos ao sistema bancário, inicialmente estimados em US$ 232 bilhões, a fim de evitar que o país seja nos anos 90 o que os Estados Unidos foram nos anos 30: o detonador de uma grande depressão mundial. Nas palavras do primeiro-ministro Hashimoto- "Nunca permitirei que o Japão desencadeie uma crise financeira mundial".

A despeito da privilegiada situação da economia americana para fazer face a uma conjuntura de desvalorização não está fora de cogitação a hipótese de que suas resistências aos episódios atuais não sejam as mesmas, considerando o grau de contágio que a globalização impõe e o baixo dinamismo japonês e dos demais países da OECD.

As considerações sobre o cenário nos países avançados nos colocam diante da possibilidade de que o agravamento da instabilidade no centro do sistema torne imperiosa a necessidade de alterações radicais na forma em que vem operando o capitalismo. Não se trata apenas de reformar o sistema monetário e financeiro internacional na linha de imaginar um "novo" Bretton Woods, com retorno a taxas de câmbio fixas, consolidação de um substituto do padrão dólar-ouro, fortalecimento do FMI e do Banco Mundial.

A dificuldade é proporcional à intensificação da interdependência patrimonial, financeira e produtiva entre nações heterogêneas cujos raios de manobra foram estreitados pelas políticas desregulatórias e pelas práticas competitivas dos grandes grupos multinacionais que vêm deteriorando a autonomia dos Estados Nacionais.

A tarefa é árdua e tangencia o impasse porque regulamentar e regular um capitalismo globalizado implicaria intervir na própria lógica da concorrência que se pretendeu libertar; transformar o afã de acumular por acumular, hoje, submetido à dominância da riqueza abstrata- monetário-financeira-; redistribuir o investimento produtivo mundial para a redução das heterogeneidades interpaíses; financiar, segundo a lógica das necessidades nacionais, os balanços de pagamentos estruturalmente desequilibrados; edificar instituições que consolidem a cooperação entre nações, num mundo em que as rivalidades são fomentadas pela própria competição econômica privada.

A dinâmica do poder que corresponde à globalização capitalista está muito distante dessa utopia. No máximo ela contempla uma atuação "instrumental e tática" expressa com exemplar fidelidade por Greenspan no depoimento acima mencionado: " Os distúrbios financeiros que afligiram uma série de moedas na Ásia não ameaçam a prosperidade dos EUA(…) mas precisamos trabalhar em cooperação estreita com os líderes desses países e a comunidade financeira internacional para assegurar que suas situações se estabilizem. É do interesse dos EUA e de outros países do mundo encorajar os ajustes apropriados de políticas e, onde for necessário, fornecer assistência financeira temporária".

Contudo, os fatos e as interpretações mais diversas ideológicamente apontam para a insuficiência de semelhante atuação na criação de uma nova fase expansiva do capitalismo mundial, coisa que não se verifica enquanto tal desde que se esgotou, nos anos 70, a prosperidade que se sucedeu após a II Guerra.

As intervenções de emergência que o Sr. Greenspan defende são muito discutíveis, quanto a sua capacidade resolutiva, até porque elas implicam reforço das politicas de globalização, liberalizantes e desregulamentadoras, que se encontram dentre os fatores causais da instabilidade mundial. Cresce o número dos que pretendem uma mudança de política, uma nova agenda de reformas, enquanto ampliam-se os sinais de que o capitalismo globalizado é muito limitado como forma de desenvolvimento econômico e social. 
(Fonte: www.eco.unicamp.br)

José Carlos de Souza Braga é professor-doutor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), pesquisador-sênior do Instituto de Economia do Setor Público da Fundap (Fundação do Desenvolvimento Administrativo), pós-doutorado pela Universidade da Califórnia (Berkeley, EUA) e secretário-especial de Abastecimento e Preços do Ministério da Fazenda (1986/1987).

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