sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Darcy Ribeiro, Dedicação e Amor do Tamanho do Brasil

O mais intelectual dos políticos
 e o mais político dos intelectuais

Em homenagem ao grande mestre brasileiro, que hoje completaria 90 anos, reproduzimos textos aqui publicados, além de outros colhidos na internet.
Clique na aba "vídeos" e assista uma entrevista histórica.


Trechos do depoimento de Darcy Ribeiro, gravado pela 
TV Cultura em 1995, ano do lançamento do livro O Povo Brasileiro.

Meu livro mostra por que caminhos e como nós viemos, criando aquilo que eu chamo de Nova Roma. Roma com boa justificação... Roma por quê? A grande presença no futuro da romanidade, dos neolatinos é a nossa presença. Isso é o Brasil, uma Roma melhor porque mestiça, lavada em sangue negro, em sangue índio, sofrida e tropical. Com as vantagens imensas de um mundo enorme que não tem inverno e onde tudo é verde e lindo, e a vida é muito mais bela... E é uma gente que acompanha esse ambiente com uma alegria de viver que não se vê em outra parte. Esse país tropical, mestiço, orgulhoso de sua mestiçagem... Isso é que me levou muito tempo. Entender como isso se fez... Havia muita bibliografia sobre aspectos particulares, mas não uma visão de conjunto. Deixa eu contar pra vocês como é que isso se fez?
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No Brasil a mestiçagem sempre se fez com muita alegria, e se fez desde o primeiro dia... Eu prometi contar como. Imagine a seguinte situação: uns mil índios colocados na praia e chamando outros: "venham ver, venham ver, tem um trem nunca visto"... E achavam que viam barcas de Deus, aqueles navios enormes com as velas enfurnadas... "O que é aquilo que vem?" Eles olhavam, encantados com aqueles barcos de Deus, do Deus Maíra chegando pelo mar grosso. Quando chegaram mais perto, se horrorizaram. Deus mandou pra cá seus demônios, só pode ser. Que gente! Que coisa feia! Porque nunca tinham visto gente barbada. Os portugueses todos barbados, todos feridentos de escorbuto, fétidos, meses sem banho no mar... Mas os portugueses e outros europeus feiosos assim traziam uma coisa encantadora: traziam faquinhas, facões, machados, espelhos, miçangas, mas sobretudo ferramentas. Para o índio passou a ser indispensável ter uma ferramenta. Se uma tribo tinha uma ferramenta, a tribo do lado fazia uma guerra pra tomá-la.
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Onde tinha algum europeu instalado na costa em contato com as naus, e portanto capaz de fornecer mercadoria, cada aldeia, e eram milhares de aldeias, levava uma moça pra casar com ele. Se ele transasse com a moça, então ele se tornava cunhado. Ele passou a ter sogro, sogra, genros... ele passou a ser parente. Então o sabido do português, do europeu, conseguia desse modo pôr milhares de índios a serviço dele, pra derrubar pau-brasil...
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No ventre das mulheres indígenas começavam a surgir seres que não eram indígenas, meninas prenhadas pelos homens brancos e meninos que sabiam que não eram índios... que não eram europeus. O europeu não aceitava como igual. O que era? Era uma gente "ninguém", era uma gente vazia. O que significavam eles do ponto de vista étnico? Eles seriam a matéria com a qual se faria no futuro os brasileiros...
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Esses filhos das índias aprendem o nome das árvores, o nome dos bichos, dão nome a cada rio... Eles aprenderam, dominaram parcialmente uma sabedoria copiosa, que os índios tinham composto em dez mil anos. Em dez mil anos os índios aprenderam a viver na floresta tropical, identificaram 64 tipos de árvores frutíferas, domesticaram muitas plantas, essas que a gente usa: mandioca, milho, amendoim.... quarenta e tantas que nós demos ao mundo...
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Mas esses índios que morriam sobreviviam naqueles mestiços que nasciam. Somos nós que carregamos no peito esses índios, os genes deles para reprodução e a sabedoria deles da mata. O Brasil só é explicável assim, é uma coisa diferente do mundo...
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Desde o princípio houve um partido de jesuítas que tinha uma utopia para os índios. Era fazer dos índios pios seráficos, religiosos, gente tão boa que era a melhor gente do mundo. Eles achavam que era a maneira de fazer o Paraíso na Terra. A religião pegou mesmo foi com as filhas das índias e das negras, as mestiças, que, não podendo satisfazer-se com a religião dos índios e dos negros, aceitavam e gostavam das novenas, das ladainhas, das missas, das procissões... E assim surgiu esse catolicismo santeiro e festeiro, que foi um belo catolicismo do Brasil até pouco tempo.
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A grande contribuição da cultura portuguesa aqui foi fazer o engenho de açúcar... movido por mão-de-obra escrava. Por isso, começaram a trazer milhões de escravos da África. O negócio maior do mercado mundial era a venda de açúcar para adoçar a boca do europeu e depois a remessa de ouro. Mas a despesa maior era comprar escravos. Os europeus sacanas iam à África e faziam grandes expedições de caça de negros que viviam ali uma vida como a dos índios aqui, com sua cultura, com sua língua, com seu modo... Metade morria na travessia, na brutalidade da chegada, de tristeza, mas milhões deles incorporaram-se ao Brasil.
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E esses negros não podiam falar um com o outro, veja esse desafio como é tremendo. Eles vinham de povos diferentes. Então, o único modo de um negro falar com o outro era aprender a língua do capataz, que nunca quis ensinar português. Milagrosamente, genialmente esses negros aprenderam a falar português. Quem difundiu o português foi o negro, que se concentrou na área da costa de produção do açúcar e na área do ouro... Mas preste atenção: com os negros escravos vinham as molecas de 12 anos, bonitinhas. Uma moleca daquelas custava o preço de dois ou três escravos de trabalho. E os donos de escravos queriam muito comprar, e os capatazes também. Comprar uma moleca pra sacanagem. Mas essas molecas pariam filhos, e quem era o filho? Era como o filho da índia. Ele não era africano, visivelmente. Ele não era índio. Quem era ele? Ele também era um "zé ninguém" procurando saber o que era. Ele só encontraria uma identidade no dia em que se definisse o que é o brasileiro.
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Esse país tomou conta de si pela primeira vez num movimento fantástico: a Inconfidência Mineira...
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Tiradentes foi esse herói nacional fantástico, um homem sábio, engenheiro que fez o serviço de águas do Rio de Janeiro, que fez o planejamento dos portos do Rio... e que conspirou na Europa, em Portugal e conspirou com os norte-americanos também. Era um intelectual que lia, conhecia a constituição americana e queria fazer uma república. Era respeitado pelos magistrados, pelos coronéis militares, pelos poetas, por aquele grupo atípico de Minas que quis criar uma República Brasileira, criar um Brasil e criar brasileiros, dando dignidade. Mas os portuguesas abafaram isto tão bem que continuou soterrada a idéia de liberdade e de autonomia do Brasil...
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Nos Estados Unidos as pessoas iam para o Oeste (o que corresponderia no Brasil a Goiás, Mato Grosso). Elas iam porque sabiam que se construíssem uma casa, fizessem uma roça ganhavam o direito de demarcar uma fazenda de 30 hectares. Aqui isto nunca deu certo porque um pequeno grupo monopolizou a terra, obrigou o povo a sair das fazendas. Eles não dividiam e sim expulsavam. Não é que eles usem a terra. Eles não usam dez por cento da terra que existe, mas expulsaram. E essa gente que foi expulsa vem viver uma vida miserável na cidade.
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Na periferia de São Paulo vive gente entregue a uma pobreza total. É de se perguntar: como tão poucos latifundiários fizeram a infelicidade de tantos brasileiros que estão em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Recife, na Bahia, por toda parte?
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Muito sabido esse D. João VI. Descrevem-no como um bestão que andava numa carroça, comendo frango com as mãos e jogando os ossos para o lado... Ele é descrito popularmente como uma besta, mas não tem nada de besta. Enquanto os reis de Espanha ficavam querendo pedir perdão a Napoleão para continuar mandando, ele viu que o bom era o Brasil, não era Portugal. Ele largou aquela velharia e veio para cá, abriu os portos e começou a organizar o país. Trouxe 18 mil pessoas. Essa trasladação trouxe pra cá toda uma classe dominante já feita, muitos deles com cursos universitários em Coimbra. É essa gente que organiza o país.
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O negro guardou sobretudo sua espiritualidade, sua religiosidade, seu sentido musical. É nessas áreas que ele dá grandes contribuições e ajuda o brasileiro a ser um povo singular. Quando chegam na cidade são capazes de fazer coisas, por exemplo, a cultura do Rio de Janeiro, a beleza do Carnaval carioca, que é uma criação negra, a maior festa da Terra! A beleza de Iemanjá, uma mãe de Deus que faz o amor. Você não vai lá pedir que o marido não bata tanto, que não seja tão filho daquilo, vai pedir um amante gostoso. Isso é uma coisa fantástica! Um povo que é capaz de inventar uma coisa destas! Nunca houve depois da Grécia! Isso são os nossos negros, os nossos mulatos desse país.
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Esse país já feito, num certo momento recebe uma invasão branca... Veja a diferença. Os que foram para a Argentina caíram em cima do povo argentino, paraguaio e uruguaio que haviam feito seus países, que eram oitocentos mil, e disso saiu um povo europeizado. Aqui não, essa quantidade de gringos caiu em cima de quatorze milhões de brasileiros. Então foram absorvidos por nós. Encontraram um país feito, com um século de história, com cidades importantes. Deram, é claro, uma grande contribuição e continuam dando, mas muitos deles não conhecem nada e acham que deram o automóvel. Essa influência das matrizes índias, negras e européias foi descrita algumas vezes como uma democracia racial. Aqui não há nenhuma democracia racial. Aqui é muito duro ser negro, O preconceito nosso é por natureza diferente do preconceito americano. Aqui há um conceito curioso de branquização, o negro quando vai ficando claro, a mestiçagem facilita isso sobretudo quando vai ficando rico, fica branco. Esse preconceito de branquização é um conceito bonito, não é democracia racial. É branquização, é uma possibilidade até preconceituosa de que o negro é aceito como alguém que vai deixar de ser negro, que vai transar com todas as brancas que vão clarear os filhos deles. É um preconceito, de certa forma, melhor do que um apartheid, que quer que o negro fique longe, fique distante para respeitá-lo lá longe, mas não quer proximidade com ele. Nós queremos é confluir, misturar. Isso é bom, mas não pode ser chamado de democracia racial.
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É muito duro para um negro fazer carreira no Brasil. Eles são a parcela maior da camada mais pobre que tá lá, no fundo do fundo, e é a camada onde pesa mais o analfabetismo, a criminalidade, a enfermidade. E é claro que precisam de uma compensação que nunca tiveram. Eles fizeram este país, construíram ele inteiro e sempre foram tratados como se fossem o carvão que você joga na fornalha e quando você precisa mais compra outro. A atitude para com o negro e o mulato e com o pobre é muito bruta. Sobretudo os branquinhos de merda, que tem uma atitude muito freqüentemente de profundo preconceito e nenhum respeito para com essa gente que fez o Brasil.
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Mas foi essa gente nossa, feita da carne de índios, alma de índios, de negros, de mulatos, que fundou esse país. Esse "paisão" formidável. Invejável. A maior faixa de terra fértil do mundo, bombardeada pelo sol, pela energia do sol. É uma área imensa, preparada para lavouras imensas, produtoras de tudo, principalmente de energia. A Amazônia devia ser um país, porque é tão diferente. O nordeste, até a Bahia... outro país que é diferente. A Paulistânia e as Minas Gerais juntas são outra gente... O sul, outra gente... Esse povão que está por aí pronto pra se assumir como um povo em si e como um povo diferente, como um gênero humano novo dentro da Terra. É claro que eu tinha de fazer um livro sobre o Brasil que refletisse de certa forma isso. E vivi fazendo pesquisa, e vivi muito com negros, brasileiros, pioneiros de todo o lugar do Brasil. E li tudo que se falou do Brasil. Então estava preparado pra fazer esse livro. E gosto dele. Tenho orgulho do fundo do peito de ter dado ao Brasil esse livro. É o melhor que eu podia dar. Gosto muito disso.

(Fonte: TV Cultura)

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(Jornal Bancários  -  Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro) 
 
Os 90 anos de Darcy Ribeiro
Nesta sexta-feira são comemorados os 90 anos do saudoso antropólogo, sociólogo, escritor e educador Darcy Ribeiro. Mineiro de Montes Claros notabilizou-se por criar, ao lado do amigo e também educador Anísio Teixeira, a universidade de Brasília (UNB).

Foi ministro da Educação e chefe da Casa Civil do governo João Goulart e teve papel fundamental nas chamadas reformas de base. Viveu entre os índios para estudar e compreender a formação do povo brasileiro, o que fez como ninguém. Com o golpe militar teve os direitos políticos cassados e foi exilado. Viveu então em vários países da América Latina, defendendo a reforma universitária. Foi professor na Universidade Oriental do Uruguai e assessorou os presidentes Allende (Chile) e Velasco Alvarado (Peru).

A volta do exílio
De volta o Brasil, filiou-se ao PDT e, como secretário de Educação do governo Brizola, criou os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Defendia a escola pública em tempo integral de qualidade para todas as crianças e  jovens. Fundou a Universidade do Norte Fluminense (Uenf), a Passarela do Samba e a Biblioteca Estadual do Rio de Janeiro. Em 1990, foi eleito senador. Em 1992, foi eleito para a  Academia Brasileira de Letras (ABL).

O Brasil de Darcy
Acreditava em nosso país como uma nova civilização do século XXI e dizia, com convicção, que o país não conseguia dar certo por uma questão ideológica, por culpa da opressão das elites brancas sobre o povo, da estrutura fundiária e do regime de trabalho, características históricas do modelo hegemônico em nossa sociedade. Apostava numa educação transformadora e revolucionária e na ruptura do capitalismo neoliberal como caminhos para a emancipação de nosso povo.

Com câncer, chegou a fugir do hospital para concluir seu livro O Povo Brasileiro, uma obra imprescindível para quem deseja compreender a formação étnica, cultural e civilizatória no Brasil.

 “O processo civilizatório é minha voz nesse debate. Agora, uma nova pulsão, mortal, reaviva a necessidade de publicar este livro que, além de um texto antropológico explicativo, é, e quer ser, um gesto meu na nova luta por um Brasil decente."

"Portanto, não se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um profundo patriotismo. Não procure, aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser participante, que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”, disse o mestre em seu último livro. 
(Fonte: bancariosrio.org.br)

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(Partido Democrático Trabalhista)

Para matar um pouco a saudade do sempre genial e inquieto Darcy Ribeiro, o site do PDT publica Minhas Peles, um trecho do livro O Brasil como Problema, escrito em 1995.  
O PDT com saudades e orgulho, homenageia um dos seus maiores líderes.
Neste texto, é Darcy que conta um pouco da sua história, das várias peles que usou em sua vida.
Saiba mais sobre Darcy, o político, educador e antropólogo em http://www.pdt.org.br/index.php/pdt/lideres/darcy-ribeiro.
Visite também o site da Fundação Darcy Ribeiro (www.fundar.org.br).

Minhas Peles

“Quem sou eu? Às vezes me comparo com as cobras, não por serpentário ou venenoso, mas tão-só porque eu e elas mudamos de pele de vez em quando. Usei muitas peles nessa minha vida já longa, e é delas que vou falar.

A primeira de minhas peles que vale a pena ser recordada é a do filho da professora primária, Mestra Fininha, de uma cidadezinha do centro do Brasil.

Outra saudosa pele minha foi a de etnólogo indigenista. Vestido nela, vivi dez anos nas aldeias indígenas do Pantanal e da Amazônia.

Não os salvei e esta é a dor que mais me dói. Apenas consolam algumas poucas conquistas, como a criação do Parque Indígena do Xingu e do Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

Pele que encarnei e encarno ainda, com orgulho, é a de educador, função que exerço há quatro décadas. Essa, de fato, foi minha ocupação principal desde que deixei etnologia de campo.

Eu investia contra o analfabetismo ou pela reforma da universidade com mais ímpeto de paixão que sabedoria pedagógica. Não me dei mal. Acabei ministro de educação de meu país e fundador e primeiro reitor da Universidade de Brasília.

Outra pele que ostentei e ostento ainda é a de político. Sempre fui, em toda a minha vida adulta, um cidadão ciente de mim mesmo como um ser dotado de direitos e investido de deveres. Sobretudo o dever de intervir nesse mundo para melhorá-lo.

Com a pele de político militante fui duas vezes ministro de Estado, mas me ocupei fundamentalmente foi na luta por reformas sociais, que ampliassem as bases da sociedade e da economia, a fim de criar uma prosperidade generalizável a toda a população.

Fracassando nessa luta pelas reformas, me vi exilado por muitos anos e vivi em diversos países. Minha pele de proscrito foi mais leve do que poderia supor.

Meu ofício naqueles anos foi de professor de antropologia e, principalmente, reformador de universidades. Disto vivi.

No exílio, devolvido a mim, me fiz romancista, cumprindo uma vocação precoce que me vem da juventude.

Só no meu exílio, nos seus longos vagares, tive ocasião e desejo de novamente romancear.

De volta do exílio, retomei minhas peles todas. Hoje estou no Brasil lutando pelas minhas velhas causas: salvação dos índios, educação popular, a universidade necessária, o desenvolvimento nacional a democracia, a liberdade. No plano político, fui eleito vice-governador do Rio de Janeiro e depois senador da República.

Essas são as peles que tenho para exibir. Em todas e em cada uma delas me exerci sempre igual a mim, mas também variando sempre.”
(Fonte: PDT)

Jamil Haddad, Oscar Niemayer, Leonel Brizola e Darcy Ribeiro
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(Portal A Tarde) 

Projeto idealizado por Darcy Ribeiro é relançado

Por
Felipe Werneck e Heloisa Aruth Sturm 
Agência Estado

Darcy Ribeiro completaria nesta sexta-feira 90 anos. Em homenagem ao mineiro de Montes Claros, morto em 1997, que foi professor, antropólogo, escritor, educador, político, ministro da Educação e membro da Academia Brasileira de Letras, a Biblioteca Nacional relançou ontem um projeto idealizado por ele no início da década de 1960, que acabou sendo abortado pela ditadura militar: a coleção Biblioteca Básica Brasileira (BBB).

Darcy dizia que fracassou em tudo o que tentou na vida, mas que os fracassos eram os orgulhos que tinha. Sua proposta original era lançar dez livros por ano durante uma década. Apenas o primeiro lançamento ocorreu, em 1963. Agora, numa parceria da Fundação Darcy Ribeiro com a Editora UnB e a Fundação Biblioteca Nacional (FNB), a coleção foi ampliada. Terá 150 títulos, que serão doados a 6 mil bibliotecas públicas do País. Os 900 mil livros serão distribuídos em três anos, diz a FNB.

"Era um sonho do Darcy. Mas veio a ditadura e proibiu. Livros são subversivos, ideias levam a pensar", diz o sobrinho Paulo Ribeiro, de 53 anos, presidente da Fundação Darcy Ribeiro. Segundo Ribeiro, a ideia da biblioteca foi retomada após a construção, na UnB, do Memorial Darcy Ribeiro, desenhado pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, e inaugurado em dezembro de 2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo presidente do Uruguai, José Mujica.

"O Darcy deu para o memorial o nome de Beijódromo. Ele dizia que era uma analogia com o Sambódromo, que ele criou. Ele não sabia sambar nem dançar, o que gostava era de beijar, por isso queria que fosse construído um Beijódromo."

Os temas da coleção foram definidos por Darcy: O Brasil e os Brasileiros, Os Cronistas da Edificação, Cultura Popular e Cultura Erudita, Estudos Brasileiros e A Criação Literária. "Nosso modelo de País era copiar o que vinha de fora. Darcy sempre foi crítico disso. Queria valorizar autores brasileiros, nossas soluções, a cultura indígena, a herança negra. Por isso a biblioteca abrange todos os ramos: formação econômica, questão histórica, filosofia, romance, poesia, etc."

O projeto tem uma segunda fase, a criação do site Cultive um Livro. Qualquer pessoa poderá se cadastrar, escolher um dos títulos da lista e sugerir seu envio gratuito a uma escola, ponto de cultura ou outra pessoa cadastrada. Nas quatro fases do projeto serão publicados e distribuídos gratuitamente 2,7 milhões de exemplares, sendo 900 mil para as bibliotecas cadastradas.

Paixão

O grande mestre e intelectual inigualável
A idealização da biblioteca foi só uma das numerosas contribuições do intelectual que demonstrava um grande amor por seu País e sua gente. "Darcy era um homem apaixonado, antes de tudo. É impossível alguém ter passado perto dele e saído incólume. E esses seres apaixonados são muito generosos, têm a preocupação de deixar um legado para as futuras gerações", diz Irene Ferraz, sua última mulher. Foi com ela que Darcy teve a ideia de criar uma escola de cinema que refletisse a grande diversidade cultural do Brasil.

Mas o intelectual morreu em 1997, de câncer, e não chegou a ver o projeto concretizado. Após cinco anos, começariam as atividades na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, da qual Irene é fundadora e diretora, que já formou mais de 3 mil alunos em uma década.

Dentre seus inúmeros "fazimentos", como Darcy costumava dizer, estão ainda a criação do Museu do Índio, do Parque Nacional do Xingu, a fundação da Universidade de Brasília (UnB), da qual foi o primeiro reitor, e a concepção da Universidade Aberta do Brasil, de cursos de educação a distância, e da Escola Normal Superior, para formação de professores do ensino básico.

Seu legado como educador também está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, da qual foi o mentor quando era senador, e na criação dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), as escolas de funcionamento em período integral da gestão de Leonel Brizola, implantadas na década de 1980, quando Darcy foi vice-governador do Rio. Na época, foram planejados 515 prédios para abrigar os Cieps. Hoje, há 296 em atividade no Estado, 76 em período integral.

"Quiçá ele não teria pensado: "Puxa vida, avançamos tanto na economia e na democracia. E ainda estamos devendo a educação para o nosso povo", diz Irene.
As informações são do jornal O Estado de S.Paulo.
(Fonte: A Tarde)

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http://www.ensayistas.org/filosofos/brasil/ribeiro/introd.htm

DARCY RIBEIRO: VIDA, OBRA, PENSAMENTO
Fábio Pereira
Biografia*


Darcy Ribeiro nasceu em Minas (1922), no centro do Brasil. Formou-se em Antropologia em São Paulo (1946) e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia. Neste período fundou o Museu do Índio e criou o Parque Indígena do Xingu. Escreveu uma vasta obra etnográfica e de defesa da causa indígena.
Nos anos seguintes (1955) dedicou-se à educação primária e superior. Criou a Universidade de Brasília e foi Ministro da Educação. Mais tarde foi Ministro-Chefe da Casa Civil e coordenava a implantação das reformas estruturais, quando sucedeu o golpe militar de 64, que o lançou no exílio.
Viveu em vários países da América Latina onde, conduzindo programas de reforma universitária, com base nas idéias que defende em A universidade necessária. Foi assessor do presidente Salvador Allende, do Chile, e Velasco Alvarado, do Peru. Escreveu neste período os cinco volumes de seus Estudos de Antropologia da Civilização (O processo civilizatório, As Américas e a Civilização, O dilema da América Latina, Os Brasileiros: 1. Teoria do Brasil, e Os índios e a Civilização), que têm 96 edições em diversas línguas. Neles propõe uma teoria explicativa das causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos.
Ainda no exílio, começou a escrever os romances Maíra e O mulo, e já no Brasil escreveu dois outros: Utopia selvagem e Migo. Publicou Aos trancos e barrancos, que é um balanço crítico da história brasileira de 1900 a 1980. Publicou também uma coletânea de ensaios insólitos: (Sobre o óbvio), e um balanço de sua vida intelectual: Testemunho. Edita juntamente com Berta G. Ribeiro a Suma Teológica brasileira. Seu último livro, publicado pela Biblioteca Ayacucho, em espanhol, e pela Editora Vozes, em Português, é A fundação do Brasil, um compêncio de textos históricos dos séculos XVI e XVII, comentados por Carlos Moreira, e precedidos de um longo ensaio analítico sobre os primórdios do Brasil.
Retornando ao Brasil em 1976, voltou a dedicar-se à educação e à política. Elegeu-se vice-governador do estado do Rio de Janeiro, foi secretário da Cultura e Coordenador do Programa de Educação, com o encargo de implantar 500 CIEPs que são grandes escolas de turno completo para 1000 crianças e adolescentes. Criou, então, a Biblioteca Pública Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa Laura Alvin, o Centro Infantil de Cultura de Ipanema. E o Sambódromo, em que colocou 200 salas de aula para fazê-lo funcionar também como uma enorme escola primária.
Elegeu-se senador da República, função que exerce defendendo vários projetos, entre eles, uma lei de trânsito para defender os pedestres contra a selvageria dos motoristas; uma lei dos transplantes que, invertendo as regras vigentes, torna possível usar órgãos dos mortos para salvar os vivos; uma lei contra o uso vicioso da cola de sapateiro que envenena e mata milhares de crianças. Combate energicamente no Congresso para que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação seja mais democrática e mais eficaz. Publica pelo Senado a revista Carta, onde os principais problemas do Brasil e do mundo são analisados e discutidos. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.
Conta entre suas façanhas maiores haver contribuído para o tombamento de 98 quilômetros de belíssimas praias e encostas, além de mais de mil casas do Rio antigo. Colaborou na criação do Memorial da América Latina, edificado em São Paulo com projeto de Oscar Niemeyer. Gravou um disco na série mexicana "Vozes da América". E mereceu títulos de Doutor Honoris Causa da Sorbonne e das Universidades de Montevidéu, Copenhague e da Venezuela Central.

ESTUDOS DE ANTROPOLOGIA DA CIVILIZAÇÃO 
Com livro O Processo Civilizatório, publicado em 1972, Darcy Ribeiro trouxe para o âmbito de nossas discussões, os grandes problemas da evolução das sociedades humanas. Ele dá início aos estudos sobre antropologia das civilizações. Sua motivação é de tornar compreensível a formação dos povos americanos. Com argumentos novos e críticos busca compor um esquema coerente e lógico da história da humanidade. Segundo Darcy, esta tarefa foi requisito prévio indispensável ao estudo da formação dos povos americanos.
Ele analisa o surgimento das formações sócio-culturais que se impuseram desde 10.000 anos, com o objetivo de entender as causas do desenvolvimento sócio-econômico desigual e quais as perspectivas para os povos ditos atrasados.
Segundo Darcy, tornava-se necessário a formulação de um esquema das etapas evolutivas para, assim, ser possível uma tipologia para poder classificar os diversos agrupamentos que se uniram para formar as sociedades nacionais americanas de hoje. Pergunta-nos:
Como classificar, uns em relação aos outros, os povos indígenas que variavam desde altas civilizações até hordas pré-agrícolas e que reagiram à conquista segundo o grau de desenvolvimento que haviam alcançado? Como situar em relação àqueles povos e aos europeus, os africanos desgarrados de grupos em distintos graus de desenvolvimento para serem transladados à América como mão-de-obra escrava? Como classificar os europeus que regeram a conquista? Os ibérios que chegaram primeiro e os nórdicos que vieram depois - sucedendo-os no domínio de extensas áreas - configuravam o mesmo tipo de formação sociocultural? Finalmente, como classificar e relacionar as sociedades nacionais americanas por seu grau de incorporação aos moldes de vida da civilização agrária-mercantil e, já agora, da civilização industrial? (1972, p.02)
Nesta perspectiva, Darcy Ribeiro surge ganhando uma projeção mundial, atuando intensamente nas discussões dos grandes problemas da evolução da humanidade.
Como vimos, em sua teoria evolucionista, Darcy busca compor um discurso que nos explique e nos ajude a perceber para onde estamos caminhando, que futuro podemos ter. Uma coisa ele deixa claro: não somos iguais; nisto parece comungar com o idéia de Simón Bolívar de que, nós, latino-americanos, constituímos um pequeno gênero humano.
Posterior ao seu trabalho "O Processo Civilizatório", Darcy Ribeiro escreveu As Américas e a civilização, publicado primeiro na Espanha em 1969, pois Darcy, neste período, se encontrava no exílio.
Tentar descrever a significação desta obra na verdade nos parece uma missão nada simples. Com o objetivo central de classificação dos povos americanos ele realiza um trabalho de proporções inigualáveis. Justifica:
Nosso estudo é uma tentativa de integração das abordagens antropológica, sociológica, econômica, histórica e política em um esforço conjunto para compreender a realidade americana de nossos dias. Cada uma dessas abordagens ganharia em unidade se isolada das demais, mas perderia em capacidade explicativa. Acresce, ainda, que existem demasiados estudos parciais desse tipo, quando não agrupados em obras de conjunto, ao menos dispersos em artigos, abordando os diversos problemas de que tratamos aqui. O que nos falta são esforços por integrá-los orgânicamente, a fim de verificar que contribuições podem oferecer às ciências sociais para o conhecimento da realidade que vivemos e para determinar as perspectivas de desenvolvimento que temos pela frente. (1970, pp. 03-04)
Encontramos aqui uma investigação combatente, questionadora dos fatores culturais, sociais e econômicos que precederam a formação das etnias nacionais americanas. Com este estudo Darcy Ribeiro buscava compreender o motivo do atraso das sociedades americanas; ele está convencido de que as teorias da história não nos explicam. Analisa ainda, as causas do desenvolvimento desigual das sociedades americanas. Dirá:
¿Por qué Haiti, que era la región más rica, más valioso del mundo, fue la madre de Norteamérica, que vivía de vender trigo? Para Haiti los negros producían su alimento, el más valioso del mundo, la mercancía más valiosa del mundo que era el azúcar. Entonces cuando visiten Francia y anden por los valles del Loira con aquellos grandes castillos bellíssimos, verán el oro divino de aquí, de Haiti. (1996. p. 22)
Neste livro, Darcy faz uma extensa análise antropológica dos fatores sociais, culturais e econômicos do período de formação das etnias nacionais. Desde a expansão européia, passando por uma profunda análise dos "Povos-Testemunhas" (os meso-americanos e andinos), ele segue delineando as transformações que deram origem aos "Povos Novos" (Brasil, Cuba, Venezuela). Estes povos, segundo Darcy:
Son nuevos en el sentido de que fueron hechos por haberse deshecho sus matrices. Sus indígenas fueron desindianizados, sus negros desafricanizados, sus europeos deseuropeizados, todo lo cual hace una cosa nueva que no tiene pasado glorioso y está volcado hacia el futuro. Son pueblos construídos con proletariado externo y parten de la inmensa dificultad de componer con gente desenraizada un gente nueva, un ser nuevo en la história. (1996, p. 23)
Os povos que migraram para as terras do Novo Mundo, Darcy os denominou Povos-Transplantados. Constituíram um número elevado de europeus que, juntamente com suas famílias, vieram parar aqui a fim de reconstruir suas vidas. Buscavam uma vida melhor, conquistar aqui o que em suas terras estavam impedidos de ter e ser. Darcy os caracteriza como:
Os Povos-Transplantados contrastam com as demais configurações sócio-culturais das Américas por seu perfil caracteristicamente europeu, expresso na paisagem que plasmaram, no tipo racial predominantemente caucasóide, na configuração cultural e, ainda, no caráter mais maduramente capitalista de sua economia, fundada principalmente na tecnologia industrial moderna e nacapacidade integradora de sua população no sistema produtivo e a maioria dela na vida social, política e cultural da nação. Por isto mesmo, êles se defrontam com problemas nacionais e sociais diferentes e têm uma visão do mundo também distinta dos povos americanos das outras categorias. (1970, p.456)
Outro ponto importante são as profundas diferenças que existiam entre os povos. Segundo Darcy não só são decorrentes das matrizes culturais predominantemente latina e católica, num caso, anglo-saxônica e protestante, no outro, como também decorrem do grau de desenvolvimento sócio-econômico.
Darcy segue mostrando os fatores de diferenciação consequentes do processo de formação étnico-nacional dos Povos-Transplantados. Dirá:
Na verdade, só historicamente e pelo exame acurado do processo civilizatório global no qual todos êstes povos se viram envolvidos e dos vários fatôres intervenientes na formação de cada uma dêles é que poderemos explicar sua forma e sua performance. Isto é o que nos propomos fazer com respeito aos Povos-Transplantados pelo exame, tanto da composição racial e cultural dos seus contingentes formadores, quanto do seu modo de aliciamento, de associação e de fusão em novas entidades étnico-nacionais. (1970, p.457)
O terceiro volume dos Estudos de Antropologia da Civilização, O dilema latino-americano, é um estudo sobre as diferentes situações entre as Américas. Darcy focaliza os contrastes existentes entre as Américas, ou seja, a convivência da riqueza e da pobreza. Neste sentido ele propõe novas tipologias para as classes sociais e para as estruturas de poder na América Latina.
Segundo Darcy:
Faltava ainda uma teoria da cultura, capaz de dar conta da nossa realidade, em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não-saber popular alcança, contrastantemente, atitudes críticas, mobilizando consciências para movimentos profundos de reordenação social. Como estabelecer a forma e o papel da nossa cultura erudita, feita à criatividade popular, que mescla as tradições mais díspares para compreender essa nossa nova versão do mundo e de nós mesmos? Para dar conta dessa necessidade é que escrevi O dilema da América Latina. Ali, proponho novos esquemas das classes sociais, dos desempenhos políticos, situando-os debaixo da pressão hegemônica norte-americana em que existimos, sem nos ser, para sermos o que lhes convém a eles. (1996, p. 16)
No seu livro Os brasileiros: Teoria do Brasil publicado em 1965, Darcy inicia uma etapa, onde ele passa a aplicar à realidade brasileira as categorias e conceitos novos construídos nas obras anteriores. Começa explicar concretamente a complexa situação brasileira. Ao que nos parece, ocorre uma ruptura bastante clara com o cientificismo que marcava as obras daquele período.
Outro livro dos estudos Os índios e a civilização publicado em 1970, segundo Darcy Ribeiro, foi o resultado dos dados colhidos durante os dez anos em que passou no convívio com os índios nas diversas aldeias em que viveu. Para Darcy foi importante a troca de experiências com indigenistas, etnólogos e também com missionários. Outra ajuda de grande importância foi o acesso aos arquivos valiosos do Serviço de Proteção aos Índios, órgão no qual trabalhou como etnólogo.
No prefácio da obra explica:
O tema deste livro é o estudo do processo de transfiguração étnica, tal como êle pode ser reconstituído com os dados da experiência brasileira; e a apreciação crítica dos ingentes esforços para salvar povos que não foram salvos. Como alguns dêsses povos conseguiram sobreviver às compulsões a que estiveram sujeitos - e alguns outros ainda não experimentaram o contato com a civilização - confiamos que tanto as análises como as denúncias aqui contidas ajudem a definir formas mais justas e adequadas de relações com os índios, capazes de abrir-lhes pespectivas de sobrevivência e um destino melhor. (1970, p. 03)
Darcy define claramente a temática e os objetivos deste livro. Segundo ele é um estudo do processo de transfiguração étnica. Numa perspectiva crítica busca interpretar as pesquisas de forma sempre elevadas reconstituindo assim, os dados da experiência brasileira.
Após uma visão geral da situação das populações indígenas no final do século XIX e início do século XX, ele passa a refletir criticamente os ingentes esforços para atender os povos desprotegidos da América Latina. Daí passa a focalizar globalmente o que chama "o processo de transfiguração étnica". De maneira nova e original reconstitui a história natural das relações dos índios e os civilizados.
Com este livro, os "Estudos de Antropologia da Civilização", um conjunto de quase 2 mil páginas, Darcy Ribeiro encerra os escritos "preliminares" de seu grande projeto: tornar o Brasil explicável. Responder a pergunta: Por que o Brasil não deu certo?. Temos assim, um conjunto dos fundamentos teóricos que tornaram possível, o que segundo ele, foi o desafio maior que já se propôs, o livro: O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil.

O POVO BRASILEIRO
Entender o sentido do que hoje somos mais que simples desafio parece se constituir num longo e minucioso trabalho. A reflexão sobre nossa formação nos envia às nossas origens, à história que como brasileiros fomos construindo. A realidade com a qual nos deparamos traz reflexões e pontos de vista oriundos de outros contextos que, para a nossa formação histórica, não são suficientes para nos explicar como povo.
Dentro desse desafio de nos tornar explicáveis Darcy Ribeiro propõe um conjunto teórico a partir da nossa contexto histórico. Ribeiro reune um conjunto de pesquisas que culminam em uma teoria do Brasil até então inédita. Subjacente à descrição desta teoria, está sua preocupação em entender por que caminhos passamos que nos levaram a distâncias sociais tão profundas no processo de formação nacional.
Retomando nossa história, Darcy começa a descrever como foi acontecendo a gestação do Brasil e dos brasileiros como povo. Nessa reconstituição ele enfatiza a confluência, ou seja, fala da união ocorrida entre portugueses, índios e negros, matrizes étnicas do brasileiro.
Um povo novo que, no dizer de Darcy, se enfrentam e se fundem, fazendo surgir, "num novo modelo de estruturação societária". Para ele, essa mestiçagem fez nascer um novo gênero humano. Nova gente, mestiça na carne e no espírito.
Segundo Darcy essa gente fez-se diferente:
Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiça, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. Povo novo ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômico, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros. (1996, p. 19)
Ao contrário do que se podia imaginar, um conjunto tão variado de matrizes formadoras não resultou num conjunto multiétnico. Diz:
... apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação. (1996, p. 20)
Com pequena exceção a grupos que sobrevivem de maneira isolada, que mantendo seus costumes, mas que, segundo Darcy, não podem afetar a macroetnia em que se encontram.
Dessa unidade étnica básica, ele não quer propor uma uniformidade entre os brasileiros, ele esclarece está questão distinguindo três forças diversificadoras: a ecológica, a econômica e a imigração. Estas formam os fatores que tornaram presente os diferentes modos de ser dos brasileiros, espalhados nas diversas regiões do território brasileiro.
Comenta:
A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos culturais. (1996, p. 21)
Propõe assim que, apesar das diferentes matrizes racionais nas quais se formaram os brasileiros, também por questões culturais e por situações regionais, "os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia". Formamos uma etnia nacional única, um só "povo incorporado".
Ressalta que este mesmo processo ocorreu consolidar os antagonismos sociais de caráter traumático. Diz:
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que encandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar o pobres que lhes caem às mãos. (1996, p.120)
Para Darcy formamos a maior presença neo-latina no mundo. Somos uma "nova Roma". Segundo ele, melhor, porque racialmente lavada em sangue índio, em sangue negro. Esta nossa singularidade nos condena a nos inventarmos a nós mesmos e desafiados a construir uma sociedade inspirada na propensão indígena para o convívio cordial e para a reciprocidade e a alegria saudável do negro extremamente alterativo.
Será nesta perspectiva que nas linhas a seguir buscaremos esboçar, segundo os termos de Darcy Ribeiro, as principais articulações de como os brasileiros se vieram fazendo a si mesmos chegando a ser o que hoje somos.

1. Novo Mundo
Nesta parte Darcy trata das características iniciais do território brasileiro, das terras encontradas pelos portugueses que desembarcaram pela primeira vez no ano 1500 do calendário europeu. Estas terras que se encontravam povoadas por um grande número de povos indígenas que viviam por toda superfície do Brasil.
Segundo Darcy: "Eram, tão-só, uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se desconheciam e se hostilizavam" (1996, p. 29).
Essas tribos aqui encontradas eram na sua maioria do tronco tupi, cerca de um milhão de índios. Elas se encontravam nos primeiros passos da revolução agrícola na escala da evolução cultural. Já conseguiam domesticar diversas plantas. Diz:
Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas. Inclusive dezenas de árvores frutíferas, como o caju, o pequi etc. Faziam, para isso, grandes roçados na mata, derrubando as árvores com seus machados de pedra e limpando o terreno com queimadas. (1996, p. 32)
Com o cultivo da terra garantiam a subsistência do ano inteiro. É importante lembrar que as aldeias possuíam uma estrutura igualitária de convivência. Mas, por colonização de suas terras, as tribos se chocavam em guerra umas com as outras.
Além dos povos tupi, outros povos indígenas participaram da formação do povo brasileiro, como os Paresi, os Bororos, os Xavantes, os Kayapós, os Kaigangs e os Tapuias.
Ao contrário do modelo constituído pelas tribos indígenas na ilha Brasil, os portugueses invasores possuíam relações sociais baseadas na estratificação das classes, tinham uma velha experiência como civilização urbana. Com eles veio a Igreja católica que exerceu uma grande influência no processo de formação sócio-cultural do povo brasileiro. Na visão de Darcy, a Igreja exerceu um forte poder de mando, influenciando na vida dos indígenas e negros.
No contexto mundial Portugal entrava na disputa pelos novos mundos, animada pelas forças transformadoras da revolução mercantil. Diz Darcy:
Esse complexo do poderio português vinha sendo ativado, nas últimas décadas, pelas energias transformadoras da revolução mercantil, fundada especialmente na nova tecnologia, concentrada na nau oceânica, com suas novas velas de mar alto, seu leme fixo, sua bússola, seu astrolábio e, sobretudo, seu conjunto de canhões de guerra.
Era a humanidade mesma que entrava noutra instância de sua existência, na qual se extinguiriam milhares de povos, com suas línguas e culturas próprias e singulares, para dar nascimento às macroetnias maiores e mais abrangentes que jamais se viu. (1996, p.38)
Era a superação da estado feudal, o processo civilizatório no seu momento mercantil.
Para Darcy além de protagonizarem o inferno da expansão territorial político-econômico, se entitularam propagadores da unidade dos homens num só cristandade. Diz:
Eles se davam ao luxo de propor-se motivações mais nobres que as mercantis, definindo-se como os expansores da cristandade católica sobre os povos existentes e por existir no além-mar. Pretendiam refazer o orbe em missão salvadora, cumprindo a tarefa suprema do homem branco, para isso destinado por Deus: juntar todos os homens numa só cristandade, lamentavelmente dividida em duas caras, a católica e a protestante. (1996, p.39)
Para o índio que passava a conviver com aquela situação nova não foi nada simples compreender o que representava aqueles acontecimentos novos. O fato é que deste choque de culturas, como quisemos tornar mais claro no primeiro capítulo, surgiram concepções que os índios estupefatos por certo tempo sustentaram, como a de que os recém chegados eram deuses.
Para Darcy, de início, os índios ali na praia recebendo aqueles indivíduos tão estranhos estavam espantados. Seriam até mesmo gente de seu deus Maíra. Comenta:
Provavelmente seriam pessoas generosas, achavam os índios. Mesmo porque, no seu mundo, mais belo era dar que receber. Ali, ninguém jamais espoliara ninguém e a pessoa alguma se negava louvor por sua bravura e criatividade. Visivelmente, os recém-chegados, saídos do mar, eram feios, fétidos e infectos. Não havia como negá-lo. É certo que, depois do banho e da comida, melhoraram de aspecto e de modos. Maiores teriam sido as esperanças do que os temores daqueles primeiros índios. (1996, p. 42)
Como sabemos, a grande decepção não demorou para acontecer. Os indígenas perceberam que os recém chegados do mar não passavam de enganadores, mentirosos, lhes traziam pequenos utensílios e em troca lhes tiravam a alegria de viver, lhes enchiam de doenças que os dizimava ao milhares.
Darcy aponta para as duas perspectivas de mundo que se chocavam. Para os conquistadores essa nova terra era um espaço de exploração em ouro e glórias, na visão dos índios, (1996, pp. 44-45) "o mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutas, de flores, de sementes, que podiam dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta gente aqui viesse ter". Enquanto os brancos não mediam esforços para alcançar as riquezas que lhes interessavam, os índios acreditavam que a vida era dádiva de deuses bons. Na perspectiva de Darcy os brancos para os índios, eram aflitos demais. Para os brancos, a vida era uma sofrida obrigação em todos estavam condenados ao trabalho e subordinados ao lucro, enquanto que, para os índios, "a vida era uma tranquila função de existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária".
Darcy preocupa-se em estudar o processo civilizatório, tendo em vista situar as nações germinais dos povos latino-americanos. Comenta:
Somos um rebento mutante, ultramarino, da Civilização Ocidental Européia, na sua versão iber-americana. Produto da expansão européia sobre as Américas, que destruindo milhares de povos modelou com o que restou deles uns poucos novos povos, multiformemente refeitos. Todos configurados como extensões da metrópole que regeu a colonização, impondo sua língua e suas singularidades. (1995, p. 11)
2. Gestação Étnica
A partir desse ponto Darcy vai desenvolvendo sua visão sobre as condições em que os brasileiros foram se formando, o que denominou cunhadismo. O cunhadismo, segundo ele, era a prática indígena que tornou possível incorporar estranhos às comunidades. Consistia em se oferecer uma moça índia como esposa aos recém-chegados. A partir de então, o estranho estabelecia uma relação de parentesco com os índios dessa família. Esse processo acabou influenciando decisivamente no processo de formação do brasileiro.
Para o colonizador essa prática tornou-se a condição de possibilidade para o processo de pilhagem nas terras conquistadas e também a própria condição da conquista das terras. Pois contavam com um enorme contingente de índios que segundo determinava o sistema de parentesco dos índios, deveriam pôr-se a serviço do parente.
Diz Darcy:
Como cada europeu posto na costa podia fazer muitíssimos desses casamentos, a instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz de recrutamento de mão-de-obra para os trabalhados pesados de cortar paus-de-tinta, transportar e carregar para os navios, de caçar e amestrar papagaios e soíns.
A função do cunhadismo na sua nova inserção civilizatória foi fazer surgir a numerosa camada de gente mestiça que efetivamente ocupou o Brasil. É crível até que a colonização pudesse ser feita através do desenvolvimento dessa prática. Tinha o defeito, porém, de ser acessível a qualquer europeu desembarcado junto às aldeias indígenas. Isso efetivamente ocorreu, pondo em movimento um número crescente de navios e incorporando a indiada ao sistema mercantil de produção. Para Portugal é que representou uma ameaça, já que estava perdendo sua conquista para armadores franceses, holandeses, ingleses e alemães, cujos navios já sabiam onde buscar sua carga. (1996, p. 82)
Por fim, à medida em que a demanda de mão-de-obra foi aumentando, tiveram de passar da utilização do sistema de cunhadismo às guerras de captura dos índios.
Outras instituições que tiveram grande influência na gestação étnica do Brasil foram as donatarias e as reduções, onde os índios viviam submetidos às ordens dos missionários.
Na concepção de Darcy o Brasil tem sido, ao longo dos séculos, um terrível moinho de gastar gentes. O fato é que se gastaram milhões de índios, milhões de africanos e milhões de europeus. Comenta:
Foi desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos. Somos, em consequência, um povo síntese, mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias que nos atenham a qualquer servidão, desafiado a frorescer, finalmente, como uma civilização nova, autônoma e melhor. (1995, p.13)
Nossa matriz negra foi responsável por remarcar o amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores mais fortes. Pelo fato de aprenderem o português com que os capatazes lhes gritavam e que com o tempo passavam a se comunicar entre si, acabaram conseguindo aportuguesar o Brasil. Diz:
Nossa matriz africana é a mais abrasileirada delas. Já na primeira geração, o negro, nascido aqui, é um brasileiro. O era antes mesmo do brasileiro existir, reconhecido e assumido como tal. O era, porque só aqui ele saberia viver, falando como sua língua do amo. Língua que não só difundiu e fixou nas áreas onde mais se concentrou, mas amoldou, fazendo do idioma o Brasil um português falado por bocas negras, o que se constata ouvindo o sotaque de Lisboa e o de Luanda. (1995, p. 14)
A condição de vida do negro é descrita por Darcy como uma situação espantosa. Relata a violência permanente pela qual foram obrigados a viver. Pergunta-se: como conseguiram permanecer humanos? Como sobreviver sobre tanta pressão, trabalhando dezoito horas por dia todos os dias do ano? A triste conclusão é de que seu destino era morrer de estafa que era sua morte natural.
Para Darcy:
Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da marginalidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. (1996, p. 120)
Darcy assinala com grande lamento que "nossos patrícios negros" sofreram e ainda sofrem o drama de sua penosa ascensão de escravo a assalariado e a cidadão, sobre a dureza do preconceito racial.

3. Processo Sociocultural
Segundo a visão de nosso autor, o processo de formação do povo brasileiro foi marcado constantemente por situações de conflitos. Caracteriza o entendido entrechoque dos contingentes índios, negros e brancos dentro do quadro de conflitos não puros. Pois, segundo entende, sempre ocorreu uma mescla entre uns e outros.
Para Darcy uma nova situação se impôs com a chegada do dominador europeu, tendo em vista que este queria buscar de todas as formas impor uma hegemonia nessas terras.
Os conflitos interétnicos que aqui existiam, sem maiores consequências, agora de maneira mais ampla, é surpreendido por uma nova situação de guerra irreconciliável.
Nesse confronto, as forças que se chocam são muito desiguais. Comenta:
De um lado, sociedades tribais, estruturadas com base no parentesco e outras formas de sociabilidade, armadas de uma profunda identificação étnica, irmanadas por um modo de vida essencialmente solidário. Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na conquista e dominação de um território, cujos habitantes, qualquer que seja a sua origem, compõem uma sociedade articulada em classes, vale dizer, antagonicamente opostas mas imperativamente unificadas para o cumprimento de metas econômicas socialmente irresponsáveis. A primeira das quais é a ocupação do território. Onde quer que um contingente etnicamente estranho procure, dentro desse território, manter seu próprio modo tradicional de vida, ou queira criar para si um gênero autônomo de existência, estala o conflito cruento. (1996, p.169)
Entre os momentos conflitivos Darcy aponta para os conflitos entre os invasores. Dizendo que entre colonos e jesuítas houve uma longa guerra sem quartéis, marcada por componentes classistas, racistas e étnicos, situa as motivações de colonização dos jesuítas num plano distinto ao da colonização espanhola e portuguesa.
Um outro enfrentamento altamente conflitivo é o que se deu por consequências predominantemente raciais. Entre as três matrizes vemos um sentimento de preconceito. Darcy diz que para o negros de ontem e de hoje, a liberdade passa a ser uma difícil e utópica busca. Por ela, são forçados a luta constante a fim de alcançarem uma situação de vida mais digna. Diz:
As lutas são inevitavelmente sangrentas, porque só à força se pode impor e manter a condição de escravos. Desde a chegada do primeiro negro, até hoje, eles estão na luta para fugir da inferioridade que lhes foi imposta originalmente, e que é mantida através de toda a sorte de opressões, dificultando extremamente sua integração na condição de trabalhadores comuns, iguais aos outros, ou de cidadãos com os mesmos direitos. (1996, p. 173)
Outra situação é a de caráter fundamentalmente classista, que configura a luta entre proprietários e as massas trabalhadoras. Darcy, ao que parece, vê essas lutas identificando-a como o recrutamento de mão-de-obra para a produção mercantil.
No processo de formação sociocultural do Brasil, Darcy vê a organização do que ele chama de empresas. A empresa escravista, ele a vê como a principal, latifundiária e monocultora que foi sempre altamente especializada e essencialmente mercantil. Outra, já como forma alternativa de colonização, foi a empresa jesuítica. Esta estava fundada na mão-de-obra servil dos índios. Uma terceira, que tinha um alcance social bastante considerável, foram as múltiplas microempresas de produção de gêneros de subsistência e de criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra. Estas incorporam os mestiços de europeus com índios e negros dando corpo ao que viria a ser o grosso do povo brasileiro.
Darcy diz que essas empresas, cada qual com seus fins específicos, atuaram para garantir o êxito do empreendimento colonial português no Brasil.
Uma quarta empresa foi constituída pelo núcleo portuário de banqueiros armadores e comerciantes de importação e exportação. Formavam o componente predominante da economia colonial e o mais lucrativo dela.
Ainda sobre o processo de formação sociocultural, Darcy elabora uma visão de conjunto do processo de urbanização brasileira. Segundo ele, o Brasil nasceu já como uma civilização urbana, separada em conteúdos rurais e citadinos. Comenta:
Essas cidades e vilas, grandes e pequenas, constituíam agências de uma civilização agrário-mercantil, cujo papel fundamental era gerir a ordenação colonial da sociedade brasileira, integrando-a no corpo de tradições religiosas e civis da Europa pré-indústrial e fazendo-a render proventos à Coroa portuguesa. Como tal, eram centros de imposição das idéias e das crenças oficiais e de defesa do velho corpo de tradições ocidentais, muito mais que núcleos criadores de uma tradição própria. (1996, p. 197)
Ele elabora um quadro da questão agrária brasileira, onde comenta as dimensões espantosas dos latifúndios, a questão do monopólio da terra e a monocultura. Relaciona o temível êxodo rural com o inchaço das cidades em consequência causando a miserabilização da população urbana. Para Darcy formou-se um modelo político-econômico que estratifica a população brasileira. Diz:
A estratificação social gerada historicamente tem também como característica a racionalidade resultuante de sua montagem como negócio que a uns privilegia e enobrece, fazendo-os donos da vida, e aos demais subjuga e degrada, como objeto de enriquecimento alheio. Esse caráter intencional do empreendimento faz do Brasil, ainda hoje, menos uma sociedade do que uma feitoria, porque não estrutura a população para o prenchimento de suas condições de sobrevivência e de progresso, mas para enriquecer uma camada senhorial voltada para atender às solicitações exógenas. (1996, p. 212)
Sobretudo, a distância social entre ricos e pobres é, para Darcy, uma condição extremamente espantosa, somando-se a isso a discriminação sofrida pelos negros, mulatos e índios. O problema racial constitui-se num sério problema no Brasil. De maneira mais seria é aquele que pesa sobre os negros, a mais árdua foi e, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Comenta:
A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, numca fez nada pela massa negra que a construira. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em pudesse educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente, discriminação e repressão. Grande parte desses negros dirigiu-se às cidades, onde encontra um ambiente de convivência social menos hostil. Constituíram, originalmente, os chamados bairros africanos, que deram lugar às favelas. Desde então, elas vêm se multiplicando, como a soluçào que o pobre encontra para morar e conviver. Sempre debaixo da permanente ameaça de serem erradicados e expulsos. (1996, p. 222)
Ainda hoje, comenta haver a mentalidade assimilacionista que leva os brasileiros a supor e desejar que os negros desapareçam pela branqueação progressiva. Para Darcy a característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele.
Para ele, a possibilidade de existência de uma democracia racial está vinculada com a prática de uma democracia social, onde negros e brancos partilhem das mesmas oportunidades sem qualquer forma de desigualdade.
Darcy avalia o processo de estruturação como uma configuração diferente de quantas haja, segundo ele só explicável em termos, históricas. Comenta:
Composta como uma constelação de áreas culturais, a configuração histórico-cultural brasileira conforma uma cultura nacional com alto grau de homogeneidade. Em cada uma delas, milhões de brasileiros, através de gerações, nascem e vivem toda a sua vida encontrando soluções para seus problemas vitais, motivações e explicações que se lhes afiguram como o modo natural e necessário de exprimir sua humanidade e sua brasilidade. Constituem, essencialmente, partes integrantes de uma sociedade maior, dentro da qual interagem como subculturas, atuando entre si de modo diverso do que o fariam em relação a estrangeiros. Sua unidade fundamental decorre de serem todas elas produto do mesmo processo civilizatório que as atingiu quase ao mesmo tempo; de terem se formado pela multiplicação de uma mesma protocélula étnica e de haverem estado sempre debaixo do domínio de um mesmo centro reitor, o que não enseja definições étnicas conflitivas. (1996, p. 254)
Para Darcy, os brasileiros são hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente. Fala-se, como diz, uma mesma língua, sem dialetos.
Como mestiços "na carne e no espírito" temos o desafio de firmar nosso potencial, nossos modos distintos entre todos os povos. Devemos forjar um verdadeiro conceito de povo que englobe a todos sem distinção, em todos os direitos que devem assistir a cada cidadão brasileiro.
Nesse país mestiço, o povo brasileiro segundo Darcy, veio formando-se como uma nova Roma. A maior presença neo-latina no mundo, ainda em ser, forja-se como a grande presença do futuro.

CONCLUSÃO
No conjunto da obra de Darcy Ribeiro reconhecemos uma clara contribuição para o pensamento latino-americano, a qual Darcy escreveu uma vasta obra sobre indígenas, negros e mestiços no processo de formação do povo brasileiro. Sua obra surge como um espelho em que nós brasileiros podemos nos identificar, nos reconhecer. Nela encontra-se um esforço que ilumina o processo de desenvolvimento humano, social e cultural do nosso povo e de toda a América Latina. Acredito que seja indispensável o conhecimento da obra de Darcy Ribeiro para uma profunda tomada de consciência a partir de uma visão de conjunto do Brasil e da América Latina.
A obra de Ribeiro abre-se ainda para uma nova perspectiva onde identificamos o brasileiro com características revalorizadas peculiarmente. Assim, há uma consciência que ainda estamos construindo, o que, para Darcy, é um dos grandes desafios que enfrentamos: o de inventar o humano, com propriedades diferentes, mais solidários e fraternas.
Como uma descrição de aventuras, Darcy fala do processo de formação do povo fazendo-se a si mesmo. Expõe sua grande convicção sobre a formação de um novo gênero humano, a partir do estudo dos componentes novos da transfiguração, resultado do choque entre índios, negros e europeus. Daí lança sua denúncia, "o Brasil sempre foi um moinho gastando gente", "endossando" a boca do europeu, enriquecendo-o com a exploração do Brasil. Na angústia por entender porque o Brasil não deu certo do ponto de vista de seu povo, dá um importante exemplo de compromisso com este povo, sobretudo, através de sua sensibilidade com os índios, com os quais se comoveu e se identificou. Destes, emocionado, diz haver ganhado dignidade.
Por fim, identificamos em Darcy, de forma inconfundível, os traços fortes dos grandes pensadores latino-americanos, como: Simón Bolívar e José Martí, principalmente no que tange a construção a idéia de uma "nação latino-americana" mais humana, como uma nova civilização, mais "generosa, porque aberta à convivência com todos as raças e todos as culturas".
*Biografia: trecho extraída do livro O Brasil como Problema de Darcy Ribeiro publicado pela editora Francisco Alves).

BIBLIOGRAFIA
  • RIBEIRO, Darcy. O processo Civilizatório: Etapas da Evolução Sócio-Cultural. 10º ed., Petrópolis: Vozes, 1987.
  • _____________. As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970.
  • _____________. O Dilema da América Latina: Estruturas de Poder e Forças Insurgentes. 5º ed., Petrópolis: Vozes, 1988.
  • _____________. Os Brasileiros: 1. Teoria do Brasil. Editora Paz e Terra, 1972.
  • _____________. Os Índios e a Civilização: A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970.
  • _____________. O Brasil como Problema. 2º ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
  • _____________. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2º ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1996
Fábio I. Pereira



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